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porque esse vai te enganar, vai provocar a sensação de que você aprende sobre o mundo fora do mundo. Não é assim.

      Outra pergunta que eu faria diz respeito a qual nível de violência institucional você encontra. Qual a quantidade de processos, de sindicâncias, de pessoas se agredindo, se atacando dentro do curso? É difícil termos acesso a isso, porque está escondido, mas, se procurar um pouquinho na internet, você acaba descobrindo. Cursos que têm relações entre os funcionários, os professores e os alunos, do tipo jurídico, contratualista, que tem tudo que ver com a lei, com o segmento das ordens. São cursos que estão acabando com a experiência do comum, que não têm cultura acadêmica, tampouco essa experiência de um destino comum. Fuja desses cursos, pois são feitos apenas para reproduzir uma promessa ilusória que você tem na sua cabeça e que não tem nada a ver como o que é, de fato, a experiência concreta com pessoas no universo do sofrimento e da Psicologia.

      C. M. R.: Pensando na formação em Psicanálise, nas duas acepções da formação, conforme você descreve em um texto sobre supervisão (por um lado, como uma história de separações em relação às ilusões constitutivas e, por outro lado, como um percurso em direção ao próprio desejo), como podemos colocar em prática esse processo hoje, especialmente dentro da academia?

      C. D.: Pensando nas supervisões clínicas de trabalhos comunitários, na prática da supervisão, eu acho que isso é plenamente aplicável. Nós acabamos fazendo um pouco assim, informalmente. Eu trabalho com a Psicanálise, então me oriento por isso, por essa ética, e isso traz uma série de corrupções ou de resistências ao sistema de controle, mais ou menos, tradicional. De fato, uma boa supervisão é aquela que, em primeiro lugar, consegue fazer com que o sujeito se escute; que consegue lhe transmitir como ele é capaz de pensar fora de si, fora dos seus valores iniciais, das suas hipóteses iniciais, das suas convicções, dos seus esquemas de ligação e dos seus esquemas conceituais. Uma boa supervisão deve ser capaz de recriar os conceitos, a partir –e no contexto local–, daquela prática e daquela experiência. Isso significa passar por um conjunto de desilusões que têm certas implicações, como “precisa ter uma relação pessoal supervisora e supervisionando” ou “grupos pequenos”. E isso sai caro, porque não tem como você contornar isso. Supervisão tem que ser para sete, cinco, oito, por vez. É um processo que você não massifica. Então, tem uma resistência dos materiais operando aí, você não tem como industrializar esse negócio. Mas mesmo com grupos pequenos você vai precisar contar com certo desejo daquele que é o supervisor na sua relação com o supervisionado, um desejo que implica certa humildade da própria posição de professor. O supervisor não é um professor, pois ele, justamente, renuncia ao exercício do seu poder, para colocar em primeiro lugar não o que pensa o aluno, mas a experiência que se coloca para os dois, os desafios, os obstáculos, aos quais tanto o supervisor, quanto os supervisionados estão submetidos.

      Isso implica laços de confiança, bem como a reinvenção da relação de autoridade e, inclusive, uma formação de crítica da situação institucional a que o aluno e mesmo o supervisor estão envolvidos. É muito interessante se pensar como nos formamos pouco para essa divisão. Então, a supervisão é feita e tudo o que acontece durante o atendimento é pensado e escutado, como se ao sair dele não se precisasse mais ser escutado e pensado, tal como a sua relação com funcionários, sua relação com o ônibus que atrasa, sua relação com as normas, e isso é, simplesmente, descartado. O supervisor tem que ter a coragem para levar e colocar as experiências do que acontece, para além do stricto sensu do privado.

      C. M. R.: Há uma frase do Lacan que diz: “Deve renunciar ao trabalho de psicanalista aquele que não consegue compreender, em seu horizonte, a subjetividade de sua época”. Qual é a subjetividade da nossa época e o que a Psicanálise tem a dizer acerca disso?

      C. D.: Uma das coisas próprias e típicas da subjetividade da nossa época é que ela não cabe em duas ou três frases. O contemporâneo é o que existe de mais opaco para nós. A subjetividade contemporânea não é acessível só porque está acontecendo agora. No recuo você pega muito melhor do que na imanência da situação. O que eu posso dizer é que há alguns casos, bizarramente, fora do horizonte da sua época, casos em que se tem uma renúncia compulsória não por idade, mas por falta de seguir o espírito da proposta. Então, o que está fora disso é aquele tipo de discurso, completamente endogâmico, condominial, às vezes feito de complexidade desnecessária, feito para iludir e criar reverência. Isso está fora do horizonte da nossa época. Aquele discurso da Psicanálise em estrutura de condomínio, o qual eu estudei, no caso do Brasil, em meu livro Mal-estar, sofrimento e sintoma. Isso é a Psicanálise que está, enfim, fora dessa subjetividade. Quer dizer, é possível entendê-la nos anos setenta e tal, mas hoje não dá mais, não é esse tipo de resistência que podemos trazer de melhor para a nossa época.

      Há uma tese do Freud, por exemplo, que para a época dele era interessante: ele falava das resistências à Psicanálise, de como a cultura resistia às teses da sexualidade, ao desejo, à teoria da pulsão. Hoje temos que pensar que não é só o mundo que resiste à Psicanálise, mas a Psicanálise que resiste ao mundo também, criando, assim, o seu próprio curral, o seu próprio mundo à parte, achando que não devemos nos contaminar… Essa coisa típica da Idade Média: “Há peste fora dos consultórios, então temos que nos proteger”. As nossas instituições devem ser refúgios para o mal-estar, então o mal-estar deve ficar lá fora, aqui é o bem-estar, e isso é ridículo, é o que eu chamaria de Psicanálise neoliberal, que a gente ainda não pôs na pauta. Há muitas tendências em Psicanálise que são expressões diretas do que há de pior na nossa época, que é o neoliberalismo, tais como: “faça-se empreendedor de si mesmo”, “cada um por si”, “as singularidades”, o self made analista, os analistas feitos as pressas, os analistas que são militantes políticos… Não dá! Isso tudo está em uma linhagem que não atualizou a crítica.

      C. M. R.: Como é que fica a questão do compromisso social para psicólogos e psicanalistas no nosso cenário atual?

      C. D.: A própria colocação “o compromisso social” já é um pouco problemática, porque é como se disséssemos: “Ah, antes a gente não tinha”. A questão é orgânica. O compromisso social faz parte do que você faz, desde o começo. Qual é o seu o conceito de sociedade? Qual é o seu conceito de compromisso? Você pode dizer: “Eu tenho uma atitude de compromisso social, porque eu estou no mercado”. Não é exatamente isso. As condições para o exercício da Psicanálise convocam a pensar, cotidianamente, a radicalidade do que significa o outro, do que significa a linguagem, o imaginário, o simbólico, do que é feito o real, e isso tudo, no fundo, é imanentemente ligado à problemática social, ao campo social. Bom, mas o que é o social? O social é tudo isso, esse regime de trocas, essas gramáticas de reconhecimento, essa experiência de sofrimento, isso tudo é o que a gente faz. O social não está fora, não está mais além, só que, se você faz mal feito, você não consegue reconhecer. Por isso eu sempre insisto que boa clínica é crítica social feita por outros meios. Mas não é toda clínica, apenas aquela que é realmente boa. Você não está ali doutrinando o seu paciente, fazendo partido, etc., você está fazendo aquilo que vai, de certa forma, restituir para o social, aquela forma de sofrimento que ele não consegue tratar, acolher e escutar.

      C. M. R.: Por último: que recomendações você faria para uma boa formação tanto de psicólogos quanto de professores?

      C. D.: Então, você não pode trabalhar quarenta horas dentro de um consultório ou dentro de uma sala de aula. Não pode. Há que se mudar a legislação. Psicólogo não pode trabalhar mais que trinta horas, que já é muito para o começo. No contrato deveriam ser quarenta horas, mas você tem que ter dez horas para fazer a sua análise, para fazer a sua formação. A formação é longa! O problema, quando se fala em Psicanálise, é que se tem o curso de Psicologia e depois se tem mais dez anos. Não adianta você dizer: “Depois vou voltar e fazer”. Isso aí, às vezes, acontece na vida de alguns, mas você tem que ter a oferta de que a pessoa ganhe para se manter, etc. É preciso que ela continue, que lhe seja facultada a possibilidade de permanecer na formação. O que isso envolve, então? Atender pacientes, trabalhar em instituições,

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