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momento, um momento em que a inspiração de lutar contra regimes opressivos se dispersou. Ainda que as nossas relações sejam excessivamente racializadas, heteronormativas, classistas ou racistas, isso tudo constitui o quarto momento da conversa, em que estamos rediscutindo o que significa a crítica e o que significa a prática formativa em um universo onde o inimigo não está tão claro e em que começamos a perceber que existem formas que nos anos setenta eram extremamente resistenciais e interessantes, mas que no presente se tornaram normas dominantes, uma espécie de crítica compulsória, ou seja, se tornaram ideologia.

      Então, está sendo feita uma espécie de balanço nesse processo, que é o momento que estamos vivendo, no sentido de uma redefinição possível do que seria o projeto de sustentação da Psicologia no mundo, porque a ideia é a de que vamos formar pesquisadores de massa porque o mundo precisa. Porque o mundo precisa de professores de Psicologia? Isso é um anacronismo, isso é o que a gente precisava se dizer nos anos setenta para formar alguma coisa chamada de sistema universitário de pesquisa, de pós-graduação, que dão os contornos de uma cultura psicológica. Por um lado, isso se tornou muito necessário, porque se realizou. Por outro, se tornou indesejável, porque estamos fazendo parte do processo do complexo “psi”, que é o processo de psicologização da cultura, da política, da saúde, etc. Ou seja, deu certo, porque deu errado. Então, porque deu certo, tudo se transforma tudo em problema. Ainda assim, a gente teria que pensar como a Psicologia pode, efetivamente, sair de seus próprios muros. Estamos vivendo em condomínio, condomínio dos pesquisadores. Nada contra a pesquisa. Que se façam as pesquisas, pois são uma coisa absolutamente essencial, mas elas precisam se conectar com as demandas reais, precisam se conectar com o comum, com a vida institucional dos países.

      C. M. R.: Indo ao encontro disso que você colocou como quarto momento: o atual contexto político do país tem influência na formação em Psicologia e Psicanálise?

      C. D.: Tem influência e essa influência deveria estar mais mais clara para as pessoas, que deveriam estar mais conscientes disso. Porque nós estamos vivendo um processo de reformulação da problemática política. Nós vivemos um processo ligado às ditaduras, e agora estamos diante de outra coisa, que passa pela emergência de discursos, que eu não gosto muito de chamar de fascista, porque isso nos remete aos anos trinta. É uma coisa nova sobre a qual temos que pensar, e também enfrentar. Acho que temos visto professores, não tanto na Psicologia, mas professores que trazem Marx para a sala de aula serem demitidos. Isso ocorre não por eles serem contra o governo, mas, simplesmente, porque tal prática não interessa ao nosso mercado, assim como não interessa ao nosso mercado uma série de outras coisas que, no fundo, são coisas caras, que a gente não quer pôr na balança. Porque, formação e educação são caras, independentemente de quem vá pagar a conta, se é o Estado, se é a iniciativa privada, se é a sociedade civil. No Brasil, pelo menos, essa discussão está sendo acobertada por outras coisas: “porque é ideológico”; “porque é mais funcional, ou menos funcional”; “ensino a distância”… No fundo, você está tentando inventar uma espécie de junk food; uma forma de pensar assim: “Olha, a gente consegue fazer barato e melhor”. E, na Psicologia, você não consegue.

      Note: não estou falando apenas com uma ênfase na clínica, que demanda tempo, pois você precisa ver pacientes, precisa cometer erros e depois aprender com esses erros, precisa combinar experiências de vida com o que você está enfrentando ali, precisa de uma vasta formação cultural, precisa de erudição, precisa trafegar em outras áreas… Porque o limite do que você consegue escutar, às vezes, é o limite da sua linguagem e da sua experiência. Sem isso, você só escuta aqueles que são iguais a si mesmo.

      Isso tudo, então, demanda tempo e custa caro. No fundo, a Psicanálise está em vantagem aí, porque ela, justamente, insiste nessa pegada. Muitas vezes, as pessoas tomam isso como sendo de elite e para ricos. Não é para ricos, só que demora e não é fácil, e o “x” da questão é como vamos produzir um ambiente de maior excelência. Por isso é que eu digo que a Psicanálise é uma peça civilizatória, porque ela está puxando para cima os nossos medíocres parâmetros de avaliação, expectativa, ensino, universidade, relações pessoais e tudo mais. Isso tudo é extremamente miserável, no mal sentido; é pobreza de espírito. A pobreza de espírito é a indecência com que a gente trata aquilo que seria mais precioso: as pessoas, suas relações, suas histórias, sua cultura.

      C. M. R.: São exigências, no mínimo, pessoais…

      C. D.: Sim. Mas isso deveria ser institucional, deveria ser comum, só que não é. No fundo, é uma discussão que está acontecendo para nós na universidade, mas também na educação em geral. Nós conseguimos incluir muita gente, muito mais do que até então o país conseguia, porém à base de uma educação pouco qualificada, muito massificada, de baixa qualidade.

      C. M. R.: É um processo de precarização que não está acontecendo só na universidade e não só na educação. É uma precarização em todos os âmbitos.

      C. D.: Exato.

      C. M. R.: Em relação a essa questão do preço que se paga para uma formação em Psicanálise, o que você pensa da popularização do ensino da Psicanálise?

      C. D.: Bom, eu concorro para isso… Tenho meu canal no Youtube (risos)… Acho que, por um lado, isso cria e reforça problemas desagradáveis ligados à psicologização e a questões de contradições sociais. Isso educora e oferece narrativas mestres no sentido do que pensa Fredric Jameson, da ideologia do capital. Existe uma quantidade extensa de problemas que vêm com essa popularização. Mas eu perguntaria: “E a popularização das outras coisas, dos outros discursos que não são da Psicanálise?” Que comparação a gente faria? A popularização da Psicanálise, que é, até onde entendo, de baixo nível corporativo, é que consegue, de fato, controlar a produção. O trabalho de Psicanálise continua bastante artesanal, com muita liberdade. Inclusive, os analistas que trabalham em instituições fazem o que podem –ou fazem o que conseguem, o que querem. E isso diferentemente de outras áreas, em que você tem um sindicato, ou uma organização que estipula e controla sua prática. Quanto a nós, devido ao nosso anacronismo, não conseguimos fazer isso com a psicanálise, por mais que a gente a popularize. Por mais que se divulguem as ideias, ninguém vai se formar psicanalista vendo coisas no Youtube ou lendo trabalhos de popularização. Essa nossa prática tem um outro sentido, um sentindo de intervenção social, de transmitir junto com a Psicanálise valores críticos, valores culturais, introdução a reflexões estéticas, problemáticas éticas. Ou seja, isso é muito mais importante do que aderência a conceitos, valores, identificações com psicanalistas específicos ou que você quiser inventar. Dito de outro modo, é nessa condição, no Brasil de hoje, que a gente tem nosso aproveitamento indireto, de que aquilo que é exigido pela formação de um psicanalista tem valor social, não de apenas se formar como psicanalista, mas para penar, para refletir, para se disseminar certa discussão ética e política, por exemplo.

      C. M. R.: No seu ponto de vista, quais são os aspectos nucleares da formação em Psicologia?

      C. D.: A gente pode pensar nuclear como as condições críticas, os pontos decisivos. Essa é uma resposta bastante contextualizada. Talvez, daqui a alguns anos as respostas, possam ser outras. Pensando hoje, as perguntas que eu faria, se eu fosse escolher um curso, como, por exemplo, a Psicologia, seriam: nesse curso a gente lê os autores, nas suas formações iniciais, originais, ou a gente lê comentadores, facilitadores? Segunda pergunta: nesse curso eu vou ter experiências concretas com pessoas, pessoas que sofrem, pacientes em hospitais, em escolas, em espaços jurídicos, ou eu vou ouvir experiências que outros vão me contar? Terceiro qualificativo: nesse curso eu vou encontrar professores que são burocratas, que estão interessados em sair da sala de aula, que estão mais preocupados em preencher formulários para os seus departamentos, ou vou encontrar professores que estão ligados aos seus alunos? Que têm espaço, tempo e incentivo institucional para dar, em curso, aquilo que se desvia do programado? Aquilo que vem como efeito secundário dos encontros que vamos fazendo? Se não houver espaço para isso, eu procuro outro curso.

      Outro tipo de pergunta que eu faria seria: que tipo de relação orgânica há entre aquela

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