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ilumina-se.

      — Isso é novo. Vais a algum lugar emocionante?

      — Ouvi dizer que as viagens internacionais são boas para a alma — declaro, encolhendo os ombros.

      — Vais a Detroit, não é? Vais a Detroit. — Então, suspira e entrelaça o braço com o meu. — Anda. Acompanha-me a casa do Terry. Assim, podes contar-me como está a correr a sobriedade.

      Está uma noite nublada e o fumo ainda não se dissipou, portanto, convenço-a a apanhar um táxi enquanto eu apanho o autocarro para voltar para casa. Quando chego à entrada, acende-se a luz do meu telemóvel. A luz só se acende quando recebo uma mensagem numa aplicação particular que instalei para poder comunicar-me com Bonnie, a filha que dei para adoção há dezasseis anos. O facto de ela saber quem sou é o resultado de uma merda administrativa espetacular. Bem-vindos ao Canadá, a terra do bacon, dos consórcios do xarope de ácer e dos erros administrativos revoltantes. Um erro que fez com que a certidão de nascimento original de Bonnie acabasse nas mãos dos seus pais adotivos quando nasceu. Talvez algum empregado de escritório cansado tenha cometido um erro. Talvez fosse o seu primeiro dia de trabalho ou talvez estivesse lá há centenas de dias. Talvez fosse uma vingança ao sistema no seu último dia. A razão por que o arquivo de Bonnie se filtrou já não importa, porque já sabe quem sou agora.

      Não só isso, como tem o meu número de telefone.

      Nunca telefonamos. Nunca ouvimos as nossas vozes. Só trocamos fotografias através dessa aplicação, para evitar aumentar os encargos nas nossas tarifas telefónicas. A fotografia que me envia desta vez é do seu pé num estribo. É sempre o pé dela em algum lado e presumo que o resto do seu corpo também. Está bem porque o seu pé está. Suponho que, de tudo isso, deva deduzir que continua com vontade de viver a vida. Agora, está a fazer um exame ginecológico, por exemplo.

      Obrigada pela atualização.

      Envio-lhe uma fotografia da Whisper que guardei com esse propósito. Ela mostra-me os pés e eu mostro-lhe a minha cadela e esta é a nossa relação. Fotografias das nossas vidas, mas à distância e mascaradas com filtros de melancolia.

      Em casa, encontro Seb acordado e no seu escritório, a rever o último rascunho das suas memórias. Acabámos agora os seus capítulos do Kosovo e estamos a abordar o seu casamento, de quando tentava passar por heterossexual. Sempre foi um grande escritor, mas este livro está tão carregado de emotividade que tive de o deixar depois de ler as últimas páginas.

      Estou preocupada porque continua sem querer falar da sua última visita ao hospital. É por isso que sei que foi má.

      — Não tenho de ir, sabes, não é? — pergunto, quando volto de levar a Whisper à rua. Não voltámos a ver o veterano desde a nossa conversa inesperada no parque. Desapareceu na noite e levou o meu equilíbrio mental com ele. Mesmo assim, estava inquieta durante o passeio e a Whisper impacientou-se, portanto, demos a volta a meio do caminho para voltar para casa. Já não gosta de estar longe de Seb durante muito tempo. Agora, está deitada aos seus pés, a lamber o tapete em que afundou os dedos.

      — Tens, sim. Além disso, preciso de estar sozinho durante algum tempo.

      — De certeza que não precisas de mim?

      — Já quase acabei — responde, encolhendo os ombros. — Fizeste um grande trabalho com a documentação e a organização, Nora. Fico feliz por… ter contado com a tua ajuda.

      Não olha para mim nos olhos.

      Quando os cães sabem que estão a morrer, encontram um lugar confortável e deitam-se lá até chegar a sua hora. Não há autocompaixão nos seus olhos. Não resistem ao que se aproxima. São os seus donos que se assustam com a ideia de o seu animal de estimação estar prestes a morrer. Mas, para o cão, só existe uma espécie de resignação tranquila.

      Uma hora mais tarde, volto a entrar no escritório. Seb está no sofá com a Whisper aninhada no outro extremo, ainda aos seus pés, ao redor da manta grossa com que se tapou. Como está a dormir, agarro-lhe as mãos ossudas e aperto-as com ternura. Não retribuiu a pressão. A Whisper abana o rabo duas vezes, mas recusa-se a levantar-se. Provavelmente, porque percebe que me vou embora. Que a minha mochila junto da porta é o sinal de que vou abandonar a manada quando mais precisa de mim. Embora tenha falado com Brazuca e tenha dado instruções — e um pouco de dinheiro extra — ao passeador de cães, continuo a sentir-me culpada. Quando olho para eles, acrescento o medo à mistura de emoções.

      O que me assusta é que a Whisper parece tão tranquila como ele ali no sofá.

      Mas não posso ficar mais tempo. Tenho de apanhar um avião.

      9

      À frente da clínica, Bonnie olha para a fotografia da cadela no seu telemóvel. Como sempre, a Whisper olha diretamente para o telemóvel e parece um pouco chateada. Um BMW prateado entra no estacionamento. Bonnie põe a mochila ao ombro e aproxima-se do carro com cautela. Entra, mas tem cuidado para não olhar para a mãe. Lynn não diz nada até abandonarem o estacionamento, mas Bonnie imagina o que a espera. A mãe tem os ombros em tensão. «Porque não me disseste?»

      — Ia apanhar o autocarro, mas esqueci-me do passe.

      — Não respondeste à minha pergunta. Porque não me disseste que estavas grávida? — pergunta Lynn, que pensava que Bonnie estava a ajustar-se bem à vida em Toronto e que só tinha de se preocupar com uma alergia leve ao zimbro da Virgínia que desenvolvera no ano anterior.

      Bonnie encolhe os ombros. Foi uma intervenção fácil, mais simples do que pensava. É como se a tivessem raspado por dentro, mas as cãibras não foram mais dolorosas do que o normal.

      — Pensava que conseguia lidar com isto, mais nada.

      Lynn evita olhar para a filha quando diz:

      — Pensavas que te julgaria. Por causa de tudo o que tive de fazer para te adotar.

      Nenhuma das duas o diz, mas está no ar. Porque Lynn não podia ter filhos. Porque Bonnie é o resultado de uma agressão contra a mãe biológica. Porque Bonnie pôde escolher enquanto Nora não pôde. E tem alguém que a leve a casa da clínica depois da intervenção.

      Lynn para o carro na berma da estrada. O clima estranhamente quente deste outono começa a ceder. Toronto está mais fresca agora, mas não o suficiente para que neve. A chuva salpica as janelas enquanto ambas olham para a frente, sem se atrever a olhar-se nos olhos. Põe a mão na de Bonnie e aperta-a com carinho.

      — Eu nunca te julgaria, querida. Nunca. É o teu corpo, a tua decisão. Está bem?

      — Sim, eu sei. Mas não queria falar disso. Podemos não contar ao papá?

      — Porque haveríamos de o fazer? — pergunta Lynn. — Não lhe diz respeito.

      — Obrigada, mamã — agradece Bonnie, mais aliviada. O pai continua em Vancouver e, provavelmente, continua a foder a chefe. Já não culpa os pais porque o seu casamento acabou — isso eram coisas de pirralhos —, mas isso não significa que esteja mais unida a eles. Sobretudo a Everett, que era o pai em quem mais confiava até, no ano anterior, descobrir que estava a ter uma aventura. Reagira exageradamente àquela notícia, de um modo espetacular. Fugira para ir conhecer o pai biológico, que fora um monstro. É um momento da sua vida em que tenta não pensar.

      — Se acontecer alguma coisa, só quero que saibas que podes confiar em mim. É só isso. — Lynn volta a pôr o carro a trabalhar. — Tens fome?

      — É demasiado tarde para comer. Só quero ir para a cama.

      Lynn olha para ela pelo canto do olho enquanto conduzem para o seu apartamento no bairro artístico de Leslieville, mas não diz nada a modo de resposta.

      Bonnie tem uma sensação de inquietação que nada tem a ver com a clínica ou com o vinho de antes. Isso foi um alívio, mais do que outra coisa. No verão passado, tinha visto o seu antigo namorado, Tommy, que agora

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