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hora mais tarde, estaciono junto do restaurante de Burnaby Mountain e dirijo-me para um ponto situado no meio do jardim. O ar está mais limpo aqui em cima. Além disso, a vista das esculturas japonesas de madeira que tenho por baixo e da cidade de Vancouver a oeste é insuperável. Estou aqui porque o meu amigo jornalista Mike Starling gostava de vir aqui para pensar ou, pelo menos, era o que se dizia no seu obituário no ano passado, depois de ser encontrado morto na sua banheira com as veias cortadas. Para mim, Starling não era dos que se sentam nas montanhas e pensam na vida, mas, na verdade, a minha memória não é a melhor. O que mais me lembro dele é do seu desdém pelos bebedores de café com nomes pomposos e o aspeto que tinha ali morto, numa banheira cheia de água ensanguentada.

      Os meus amigos do grupo de apoio garantem-me que não tenho razões para me sentir culpada porque não fui eu que o matei, mas o que saberão? Também não é como se a sua opinião fosse muito sensata. E o que não sabem (porque não lhes disse) é que fui a razão por que morreu. Morreu porque umas pessoas perigosas foram procurar-me e ele escolheu proteger-me. Talvez até estivesse aqui sentado enquanto chegava à conclusão de que valia a pena lutar pela minha vida, quando decidiu que investigaria quem me tinha posto um alvo nas costas.

      Bebo o café que trouxe comigo — com um nome pomposo — e verto um pouco no chão junto de mim, para ele. Para que saiba que a mulher por quem sacrificou a vida ainda tem um pouco de sentido de humor. Talvez gostasse de vir até aqui e talvez ainda reste uma parte dele neste lugar, porque me parece que Mike Starling nunca conseguiria virar as costas a um mistério.

      Na verdade, eu também não consigo.

      5

      É tarde. O conteúdo da caixa está espalhado na mesinha baixa à minha frente e estou deitada no chão, a observá-lo à altura dos olhos. Não há grande coisa. Uma carta de amor. Uma fita de seda azul amarrotada. Cinco postais de uma morada em Detroit. Algumas fotografias desgastadas. Numa, aparece uma mulher na cama, com um bebé ao colo. A mulher tem a cabeça cortada, talvez deliberadamente, e embala, nos seus braços bronzeados, um bebé enrugado. A data que aparece no dorso indica-me que esse bebé a dormir sou eu.

      Deixo-a de lado.

      As outras duas são do meu pai, com Lorelei e comigo. Essas fotografias não têm data, mas os três mudámos drasticamente de uma fotografia para a seguinte. Lorelei e eu crescemos com a velocidade a que as crianças crescem, mas o aspeto do meu pai deu uma reviravolta dramática. Em ambas, tem o cabelo preto e liso e os olhos escuros. Foram as rugas da cara que mudaram. Na primeira, parece um pai satisfeito, mas cansado. Na segunda, parece um homem atormentado com um pé na sepultura. Criar filhos não está ao alcance de qualquer um.

      — O que estás a fazer? — pergunta Seb, da porta. O meu próprio fantasma vivo decidiu fazer o seu aparecimento silencioso, com um rosto gasto e pálido.

      — Tens fome? — Aponto para a caixa de pad thai que comprei no seu restaurante favorito, ao virar da esquina. Compro um pouco a cada dois dias, para o caso de estar com vontade de comer uma dose elevada de sódio e hidratos de carbono. Acabo sempre por a comer na manhã seguinte porque nunca está de humor para isso. Embora me garanta que come, raramente o vejo a fazê-lo. Eu, por outro lado, ganhei cinco quilos desde que me mudei. Se há uma coisa que não consigo suportar é desperdiçar a comida. Porque, então, tenho de descobrir como conseguir mais.

      Abana a cabeça e aproxima-se das fotografias.

      — Quem são esses? — pergunta, olhando por cima do meu ombro.

      — O meu pai e a minha irmã.

      — E tu. Bonita. — Quando sorri, a sala ilumina-se e quase me esqueço de que está prestes a morrer. — De onde vem este ataque de nostalgia?

      Já não escondemos segredos um ao outro. Não há tempo para isso. Falo-lhe do homem da outra noite, que disse que conhecia o meu pai.

      — Que estranho — murmura e deixa-se cair na poltrona rígida que há junto da mesinha. Uma das poucas peças de mobiliário que o seu amante Leo, o meu antigo chefe, deixou para trás no seu ataque de raiva despeitada. — Depois de todo este tempo. Porque haveria de se incomodar?

      Encolho os ombros.

      — É que… — Deslizo o olhar pelo teto, pelo chão, pela Whisper, por qualquer lugar menos pelas fotografias.

      — O que foi?

      — Nunca soubemos grande coisa da sua vida. Quando a minha tia adoeceu, puseram-nos em lares de acolhimento e levei estas coisas comigo no seu momento. Quando ela morreu, doou quase tudo o que tinha à beneficência e tudo o resto desapareceu. Não resta nenhum outro dado da vida do meu pai. — Nem dos nossos primeiros anos. Mas não digo isso, porque está implícito.

      — É isso que te inquieta? Que só tenhas esta caixa? — A sua voz parece tão leve, tão suave, que flutua sobre a tensão que se acumulou no meu interior. — Porque descreveste o teu pai como um sobrevivente das recolocações dos anos sessenta. Muitas crianças com herança indígena que foram afastadas das suas famílias e entregues para adoção sabiam menos dos seus pais. Tinham muito menos do que tu tens nessa caixa.

      E algumas tinham mais e, outras, tinham mais ou menos o mesmo. Anos depois de o governo canadense pôr em prática o sistema escolar residencial, também aplicou uma política de adoção forçada que não tencionava ajudar a melhorar a situação. Fora das reservas, fora dos centros urbanos, aquela integração imposta aconteceu em comunidades onde causou danos. Se se pensar bem, essa estratégia é sempre a que mais se usa quando se tenta apagar as pessoas. No Canadá, como se fosse outro lugar do mundo colonial, começaram com as crianças.

      Sei que, provavelmente, Seb tem razão ao dizer que devia sentir-me agradecida pelo que tenho, mas, agora, não acho que pudesse saber menos do que sei.

      — O que me inquieta é que não consigo confirmar nada do que me disse. Não é que careça de informação, mas a que tenho está incompleta.

      Pega nos postais.

      — E estes? De quem são? — Não há assinaturas em nenhum deles. Só o nome do meu pai, rabiscado com uma letra retorcida.

      — Cresceu em Detroit. É onde vivia a família que o adotou. Mas, quando era criança, nunca me falou deles. Nunca nos vimos. Soube deles através da minha tia, mas ela também não sabia grande coisa.

      Seb fica a olhar para o vazio com o olhar desfocado. Com um ataque súbito de energia, levanta-se da poltrona e agarra-me as mãos. Quando fala, a sua voz parece grave e urgente.

      — Às vezes, estas coisas acontecem por uma razão, Nora. Não percebes? Este homem entra na tua vida e obriga-te a pensar no que sabias sobre o teu pai. E, como tu própria disseste, não é grande coisa. Agarraste-te às lembranças que tinhas dele quando eras criança, mas talvez tenha chegado o momento de saber quem era realmente sem as vendas da infância.

      Mas está morto, sinto vontade de dizer.

      Quero dizer-lhe para se meter nos seus próprios assuntos e para me manter afastada da sua obsessão com o passado, mas não o faço. Talvez seja porque, normalmente, não falo do meu pai em voz alta. Construí um búnquer no meu coração em torno da sua lembrança. Com paredes de betão. Construído para suportar um ataque nuclear. O chamativo neste búnquer não é o que há lá dentro, mas o que falta. Não há respostas, só perguntas. Foi por isso que escolhi mantê-lo enterrado nas profundidades durante tanto tempo. Porque abri-lo só me demonstra tudo o que não sei.

      — Vai a Detroit — continua Seb. — Encontra quem enviou estes postais. Fosse qual fosse o problema, a pessoa que abrir a porta nessa morada poderia saber alguma coisa. Se não fores, ficarás sempre com a dúvida. Vai atormentar-te.

      Agora, percebo o que está a fazer. Está a tentar impedir que cometa os mesmos erros que ele cometeu. Devia calar-me, mas não o faço. Não tenho nenhum controlo sobre o que digo depois.

      — Tal como o Leo ficará com a dúvida para sempre

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