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traição pessoal. Sou das poucas pessoas que está a par da doença de Seb e acedi a escondê-lo ao resto do seu ambiente.

      Seb solta-me as mãos como se se tivesse queimado e abandona a divisão sem dizer uma palavra. A Whisper levanta-se com elegância do seu lugar junto da janela e corre atrás dele. Tal como Seb, recusa-se a olhar para mim, para me recordar que não mereço nenhum dos dois.

      Quando ouço que se fecha a porta do seu quarto, apago as luzes da sala, aproximo-me das cortinas e fico a olhar para o parque da frente durante um bom bocado. O facto de não ver o veterano de guerra não significa que não esteja lá.

      Ligo a David que, até agora, não sabia que tinha o seu número. É bom ter alguém que atende sempre o telefone quando lhe ligam. Embora não reconheça o meu número no ecrã do telemóvel, é demasiado educado para deixar que vá para o correio de voz.

      — Sim? — Atende ao quarto toque. A sua voz é sonolenta.

      — É a Nora. A Lorelei alguma vez foi a essa morada? A que figura nos postais.

      Há uma pausa e ouço o barulho dos lençóis enquanto se levanta da cama. Abre-se uma porta e, depois, fecha-se.

      — Não — responde, num sussurro quase inaudível. — Escreveu algumas cartas na universidade, mas nunca obteve resposta. Não tinha dinheiro suficiente para ir descobrir sozinha… e, depois, deixou-o passar. Estás a pensar em ir?

      — Não sei — digo, depois de uns segundos. — Obrigada. — Desligo o telefone. É sempre bom deixar as pessoas um pouco confusas. Que deem voltas à cabeça, para que atendam o telefone da próxima vez que ligar.

      Quando Seb me perguntou o que me inquietava, esquivei-me do assunto. Mas é tão simples como isto: Quando uma bala bate num crânio, o sangue e a massa cerebral são expulsas com força. Rasga os ossos cranianos, os tecidos conectivos e as membranas. Dependendo da proximidade do canhão, há a possibilidade de queimar a camada externa da pele com o fumo e a pólvora. O resultado de uma bala no cérebro é a morte, a não ser que tenha imensa sorte. O meu pai não teve.

      No entanto, o que me importa agora é porque apertou o gatilho. Não paro de pensar na razão por que duas meninas pequenas foram abandonadas à mercê do sistema. Quando o resultado é foder a vida de alguém por completo, a motivação é importante. E talvez Seb tenha razão. Talvez encontre a resposta em Detroit.

      6

      Há vários meses, quando Seb, Leo Krushnik e eu ainda trabalhávamos juntos em Hastings Street, Leo deixou cair na minha mesa um pedido de passaporte com o argumento de que as viagens internacionais poderiam melhorar a minha vida sexual. «Não estás morta da cintura para baixo, sabes?», comentou. «E é difícil ter sexo nesta cidade.» Então, lançou um olhar nostálgico a Seb.

      Essa foi a primeira vez que observei o distanciamento entre eles.

      Agora, dirijo-me para o escritório antes do amanhecer, muito antes de Leo pensar em aparecer. O seu novo sócio, pelo contrário, é antissocial e tem horários estranhos. Uso a minha antiga chave para entrar e estranho que Leo não se tenha incomodado em mudar a fechadura. Há muito tempo que não passava por aqui, mas a mudança é surpreendente. Mudou a decoração toda do local. Qualquer lembrança da presença de Seb foi eliminada sem piedade. O seu diploma de confeitaria não está pendurado em nenhuma parede e também não está na casa, o que faz com que me questione se Leo terá feito algo drástico com a única prova tangível de que Seb sabe o que fazer com a manteiga e a farinha.

      Embora o escritório seja no centro da zona leste da cidade, bastante suja, o interior é bastante chique agora. Mais do que gritá-lo aos quatro ventos, a nova decoração anuncia discretamente que aqui se levam a cabo investigações por uma módica quantia. Quando Seb me deu a oportunidade de ir com ele, não hesitei, mas, pela primeira vez, sinto nostalgia. A minha secretária velha continua na zona da receção, mas está quase eclipsada por um vaso enorme cheio de flores.

      Stevie Warsame, o novo sócio de Leo, mudou a sua mochila boa para o escritório de Seb e instalou um posto complexo de computadores num canto. No outro canto, há uma segunda secretária que me incomoda. Embora não tenha vindo por isso, não consigo evitar revistá-la. Só encontro alguns carregadores de telemóvel, equipamento de vigilância e uma tabela que compara o valor nutricional de diversos legumes quando se bebem em sumo. Leo substituiu-me por um vaso e deu uma secretária no escritório de Seb a um maluco dos sumos?

      — Encontraste o que procuravas? — pergunta uma voz familiar atrás de mim.

      Brazuca, o meu antigo padrinho dos Alcoólicos Anónimos, está apoiado na ombreira da porta, a olhar para mim com desconfiança. Não o vejo desde o ano passado, quando me disse que me perdoava por o ter drogado e abandonado num hotel na montanha. Quando descobri que me tinha mentido sobre o seu trabalho e fui demasiado estúpida para me aperceber.

      Agora, aqui estamos outra vez, ambos com um certo mau aspeto, ele um pouco menos; possivelmente devido à introdução dos legumes frescos na sua dieta. Tem melhor cor nas faces e os olhos parecem brilhar mais. Por alguma razão, imagino-o a foder, mas é um pensamento desagradável. Nenhum dos dois tem carne. Estamos demasiado magros e colar os nossos ossos bicudos uns contra os outros é o menos sensual que consigo imaginar. Não conseguimos consolar-nos. Pelo menos, um ao outro. Se respondesse ao meu anúncio online, teria de apagar a mensagem dele. O instinto de sobrevivência é uma coisa curiosa.

      — A melhorar a tua vida? — pergunto, enquanto levanto a tabela.

      Sorri, ignorando a distância entre ambos, como se fosse uma questão de simples espaço físico. Contudo, à medida que os segundos passam e a distância se transforma num abismo, percebe que não há nada entre nós senão a desconfiança e um único orgasmo.

      — Uma coisa dessas — concede. — O que estás a fazer aqui? Pensei que tinhas ido trabalhar com o Crow.

      — O que estás a fazer aqui? Pensei que trabalhavas para a WIN Security. — A empresa de segurança que foi contratada para encontrar a minha filha, Bonnie, quando desapareceu. Contratada por uma família corrupta que os comprou. Fui alertada do seu desaparecimento pelos seus pais adotivos, o que desencadeou uma série de acontecimentos que fizeram com que quase morresse afogada.

      — Precisava de uma mudança depois do ano passado. Não respondeste à minha pergunta. — Entra na sala. Ainda me dói muito o ombro do tiro do ano passado, mas, com a fisioterapia, consegui disfarçar o coxear causado por uma lesão no tornozelo que nunca chegou a sarar por completo. No entanto, Brazuca não teve tanta sorte com a sua perna entrevada, resultado de uma ferida de bala quando era polícia. Ou talvez as suas lesões não sejam apenas físicas. Atribuo-o à sua mentalidade de vítima.

      — Estou à procura do Stevie.

      — O Warsame está numa missão — informa Brazuca, o que explica o silêncio de Stevie. — Queres deixar uma mensagem?

      Não preciso de Brazuca para isso. Se quisesse deixar uma mensagem a Stevie, fá-lo-ia sozinha. Mas o que tenho de dizer não pode comunicar-se por meios eletrónicos. Não criaram carateres de teclado capazes de o abranger.

      — Vou estar fora durante algum tempo. Preciso de alguém que dê uma olhadela ao Seb.

      Não me pergunta onde vou e eu não lhe ofereço mais informação.

      — O que se passa? — pergunta, finalmente.

      Falo-lhe do cancro e dos tratamentos falhados.

      — O Leo não sabe — acrescento, quando acabo. — Posso pagar-te para que o faças se o Stevie não puder.

      — Porque é que todos acham que preciso de dinheiro de repente? — murmura, enquanto passa uma mão pelo cabelo.

      Encolho os ombros. Talvez tenha alguma coisa a ver com a roupa dele, que está bastante desfasada e, na verdade, não é suficientemente justa para o homem moderno, mas não o menciono. O ego masculino é muito frágil.

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