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passados annos, vejo confirmado experimentalmente tudo o que eu previra… Que quer?.. Faltavam-me como comprehende os meios de verificação. Precisava de factos.

      Cala-se um momento e depois continua:

      – Hei-de publicar, depois da Oração á luz, que sae brevemente, uma serie de memorias, com os resultados dessas experiencias. A vida – é o Amor e a Dor. Procurar as suas leis eis tudo. Seguir-se-ha a minha theoria philosophica. Adivinhei todo este terremoto que se deu ultimamente na sciencia. Hoje a materia não existe: já a definem – associação d'energias. O que é feito dos materialistas? A sciencia futura será portanto o estudo de energias. Por ultimo publicarei uma introducção á sciencia, visto que não posso escrever essa obra: seria a revisão dos trabalhos de Spencer – a tarefa de toda uma vida.

      – E tem muitos documentos?

      – Tenho tudo prompto. Necessito apenas de encontrar a fórma precisa, a fórma mathematica, para exprimir as minhas idéas.

      Incansavel. É de ferro. Pequeno e mirrado passeia horas e horas, a conversar… Não conversa – monologa.

*

      Da Barca d'Alva diz:

      A minha casa de jantar tem uma meza e cadeiras de pinho. Depois de comer, quando quero um palito, corto-o na meza.

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      Ramalho definido por Junqueiro: – um pinheiro com uma melancia em cima.

*

      Junqueiro na redacção do «Mundo»:

      – D'aqui a pouco reparto a minha fortuna com as minhas filhas e o que me restar dou-o aos pobres.

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      Ha outro Junqueiro de que a caricatura se apoderou, o Junqueiro do bric-á-brac. O Junqueiro que a má lingua do Porto afirma que percorre disfarçado as ruas de Hespanha, com um burro pela arreata apregoando: – Ha por ahi quem tenha louça para vender? – O Junqueiro que foi procurado um dia no hotel, em Salamanca: – Está cá o grande poeta Guerra Junqueiro? – Não conheço, – disse o porteiro. – Mas elle vem sempre para aqui. É um homem de barbas… – teimou, explicou o outro. – Esse es Guerra el antiquario!..

      Mas até no Junqueiro caricatural algumas linhas são indispensaveis para completar o retrato. Ha n'este grande homem uma mascara. Sinto uma parte que se deve ao arranjo – e que é a inferior e outra em que elle obedece á raça e que é a mais viva, a que tem raizes nos mortos. Melhor: o homem é sempre um tablado onde varios phantasmas se despedaçam. Ha mãos que nos puxam para o fundo, ha outras que nos procuram levantar cada vez mais alto. Deus nos livre de julgar os mortos!

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      Junqueiro, de volta do Bussaco, indignado:

      – E não aparecer um doido, com um grande martelo, que deite tudo aquillo abaixo! Qualquer dia botam as arvores a terra e põem pedraria até á Pampilhosa!

Dezembro – 1907.

      Encontro-o hoje em Lisboa, emagrecido, com um velho casaco comprado n'um adelo, e muitas rugas, finas como linhas, ao canto dos olhos. E, como o José de Figueiredo lhe fale no Rodin:

      – É verdade, passei um dia inteiro com o Rodin, a explicar-lhe a sua obra. Disse-lhe: você é um grande artista, mas exactamente, como em todos os grandes artistas, a melhor parte da sua obra é inconsciente. Porque em todos nós a razão é nada, o que é grande é o inconsciente. Aquella cabeça que você tem no Luxembourg, emergindo da pedra – é assim, é aquillo… Mas falta-lhe não sei quê de simbolico que ligue a cabeça á pedra. Assim choca, é brutal. É como o Pensador, a estatua que está no Pantheon. Toda a critica franceza tem tentado explicar aquella estatua, e ainda ninguem disse as palavras necessarias. Eu lh'as digo: Aquillo não é o Pensador, nem o Pensamento: é o primeiro pensamento em cabeça de homem. Dispa você um tipo de verdadeiro pensador, Kant, o Dante, por exemplo, e encontra um corpo deformado. Porque o pensamento peza mais de que montanhas. Devora. O que você fez foi uma besta, um gorilha, um homem capaz de arrastar calháos: Pois bem: inconscientemente fez uma grande obra d'arte: o primeiro pensamento na cabeça d'homem. Esse primeiro homem athletico, ao deparar com o primeiro pensamento, essa flor abstracta, fica dominado, subjugado: cae-lhe o Atlas em cima e esmaga-o… E adeus, são horas de partir para o comboio.

*

      D. Carracida, professor de chimica biologica na Universidade de Madrid, homem ilustre e que conhece perfeitamente a literatura portugueza, diz assim de Junqueiro… (D. Carracida fala portuguez pausadamente).

      – O senhor Junqueiro, grande poeta, é um mistico… Está agora no misticismo. O senhor Junqueiro e eu passeavamos juntos no jardim de Villa do Conde, de cá para lá – e o senhor Junqueiro prégava a piedade e o amor. Uns rapazinhos acendiam balões para uma festa, e eu e o senhor Junqueiro passeavamos de cá para lá… O senhor Junqueiro prégava a piedade e o amor, e um dos balões cahiu na cabeça do senhor Junqueiro, que levantou a bengala e deu com ella no rapazinho… E nós continuamos a passear de cá para lá, e o senhor Junqueiro a prégar a piedade e o amor…

Março – 1903.

      Fialho não é este janota de palio rico, com uma joia tão grande que parece falsa na gravata de veludo. Fialho era outro estranho tipo, intratavel e pobre, com o pêlo ralo e a bocca enorme cheia de sarcasmo. Um principe de gabinardo, que fazia cahir as peças do alto do galinheiro, a um gesto seu irrespeitoso. Seguia-o a malta atonita de matulas suspeitos e jornalistas de ocasião, que deslumbrou de sonho e atascou em sonho. – Fialho! Fialho!.. – Esses aplaudiram-no e amaram-no… Esquecidos do frio e da pobreza, não despregavam os olhos d'aquelle sonho desconforme. – Fialho! Fialho!.. – Depois sumia-se n'um terceiro andar, ou procurava os pobres que não pedem: só a mão sae da noite e implora. Havia uma velha – nunca mais me esquece – alli á porta do Monte Pio, que fazia parte do muro alto e espesso, e a quem elle, ao dar-lhe esmola, lhe afagava a cabeça… Depois, amargo, feroz, insuportavel, eil-o tornava com sarcasmos, transtornando as figuras decorativas, cheias de veneras, que á sua voz desatavam ás cambalhotas como palhaços. Vi-o exasperado, vi-o atordoado de phrases, como quem quer fugir ao proprio phantasma. Vi-o mergulhar n'uma absorpção dolorosa, e desaparecer na noite em correrias que duravam até de manhã pelos bairros escusos ou pelas azinhagas de crime, n'um debate perpetuo de que sahia livido, exhausto, e com a mascara transtornada. Este que fala do seu vinho: – Livros?.. O que eu trato de editar é um vinhinho branco lá de Cuba… – este, que vem, de quando em quando, a Lisboa deslumbrar-nos com um novo e horrivel fato, é outro Fialho, que talvez tenha saudades d'essa vida absurda de outros tempos…

      Fialho! Fialho!.. Pronuncio este nome e diante de mim desfila o assombro, pamphletos, a obscenidade e o genio – farrapos arrancados a ferro e tão vivos que mal ouso tocar-lhes – o estoiro d'uma bexiga d'entrudo – ironia e esgares. E logo gritos! e agora gritos!.. Ouço a dor, sinto a dor, sinto-a sempre atravez da forma imprevista, d'uma audacia e d'um rithmo incomparavel, escorrendo sonho, aflição, miseria, sinto-a até nos impetos de máo gosto, nos pontapés aos leitores surprehendidos e irritados. Está aqui diante de mim aquella bocca enorme, aquella figura de gabinardo e chapeu molle que nas noites de tristeza e abandono me dizia: – O que eu sofri! o que eu sofri!.. – Vejo-o sempre invejar o barqueiro louro e sardento, de que fala nos Gatos, bello como um ephebo á prôa do seu barco. – Como eu queria ter saude e ser forte! – Deu-lhe Deus o mais rico quinhão que imaginar se pode, a lingua incomparavel para exprimir a chimera e a dor, e, esse macaco sem fé, esbanjou-a com o mais absoluto impudor: serviu-lhe para a chacota. Transtornou tudo, engrandeceu tudo, riu-se de tudo. As descripções perderam a proporção, as figuras a realidade, transformadas em figuras de dor ou de grotesco; a propria cidade resurgiu a uma tinta livida de antemanhã, com a casaria a escorrer vicio e aspectos tetricos… É isto sim, mas isto creou-o elle de pobreza e desespero, creou-o de gritos que nunca ninguem lhe ouviu. – E maior! ficou maior! A sua obra só tem outra que se lhe compare, a de Camillo. Exigem-lhe um livro harmonico —Os cavadores. Porque é que toda a gente reclama dos outros aquillo de que elles são incapazes? A obra de Fialho não podia ser senão esta, aos arrancos e enorme. Fialho via os pormenores atravez d'uma lente, e deturpava tudo, deformava tudo, dando genio á propria obscenidade. Nunca conheceu Barjona, nunca viu Barjona, e, com duas ou tres anecdotas, creou uma

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