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não tenho opinião nenhuma…

      – Não se recuse, Latino. Peço-lho como amigo.

      – Então, marechal, deixe-me dizer-lhe que quem como V. Ex.a conquistou um nome glorioso com a espada, não deve servir-se da canalha para fazer o que fez. A sua situação é deploravel.

      – Não me diga isso! E se eu aproveitasse a situação para firmar de vez a liberdade em Portugal e salvar o paiz?

      – Se V. Ex.a quizesse…

      – Mas é que quero, e para isso venho ter comsigo.

      Combinaram que o Latino redigiria os decretos ampliando as liberdades publicas, tornando-as efectivas, e convocando constituintes com poderes amplissimos.

      – O maior segredo… – recomendou o Latino.

      N'essa noite não dormiu. Acompanhado d'um amanuense do ministerio, redigiu os decretos, que no dia seguinte o proprio Saldanha foi buscar, metendo-os dentro da pasta. Mas fosse que os amigos que lá estavam em casa tivessem desconfiado; fosse que o Saldanha désse á lingua, o que é certo é que o rei foi prevenido a tempo por alguem que lhe disse:

      – O Saldanha vae trazer-lhe uns decretos. V. Magestade não os assigne ou está perdido.

      Quando o Saldanha chegou ao Paço o rei abraçou-o:

      – Pois o duque ajudou a conquistar-me o throno e não quer que meus filhos reinem? Nem talvez eu chegue até ao fim da vida no poder…

      Saldanha que era um fraco recuou. D'ahi a dias encontrou-se com o Latino que lhe disse:

      – V. Ex.a não podia deixar-me dormir a minha noite socegado?

      Por trez vezes, conclue Maximiliano, o Latino me contou isto. Já tenho querido descobrir os decretos. Devem estar em casa do irmão, n'um quarto interior, onde a traça vai roendo os papeis do grande escriptor…

*

      Um dia o Saraiva de Carvalho foi propor a revolução ao Latino:

      – Mas ha-de ser tudo assassinado – toda a familia real.

      – Isso não! – protestou logo o Latino.

*

      Morreu virgem, como Newton. No dia de sua morte, estava o cadaver na cama, apenas coberto com um lençol. Alguem disse para o Maximiliano:

      – Bastaria arrancar aquelle lençol para descobrirmos o segredo de toda a sua existencia.

*

      Junqueiro dizia de Latino:

      – Sim, é um homem admiravel, que em logar de c… tem duas castanhas piladas!

Maio – 1903.

      Um jornal publica hoje esta noticia:

      POVOA DE LANHOSO, 29 – Faleceu, sepultando-se hoje, o sr. dr. Joaquim da Boa Morte Alves de Moura, da freguezia de Santo Emilião, bacharel formado em philosophia e mathematica pela Universidade de Coimbra.

      O povo apelidava-o de santo, pelas suas sublimes virtudes christãs. Tinha 92 annos de edade; o falecido fôra frade agostinho.

      O homem, a quem estas seccas linhas se referem, era na verdade um santo. Deixou tudo para viver pobre, perto de S. Martinho do Campo, entre cavadores e a gente humilde da terra que o adorava. Vi-o muitas vezes passar na estrada, todo branco, minguado, com o burel, que nunca quiz largar, no fio, e os sapatos rotos. Era efectivamente formado em philosophia e direito, e até por vezes fôra convidado para lente da Universidade de Coimbra. Recusou sempre, recusou tudo, preferindo a convivencia com a gente do povo e com a natureza que o rodeava. Ha entre as duas povoações, S. Bento e S. Martinho, que ficam á beira da estrada da Povoa de Lanhoso, uma fonte que brota da raiz de uma arvore. Perto fica a ermida. Alli se costumava o santo homem sentar, horas e horas embebido nas suas meditações. Em que scismava? Decerto no passado longinquo…

      Lembram-se d'uma narrativa de Alexandre Herculano, que se chama, creio eu, «O ultimo dia de convento?» Um frade chora ao deixar para sempre a cella caiada, onde passou a vida inteira. É só isto, afóra a ternura, as lagrimas, a prosa do grande escriptor. Assim D. Joaquim da Boa Morte contava tambem as ultimas horas de convento. Velhinho, tremulo, vivendo de esmolas, recolhido por caridade em casa de duas mulheres, que o cuidavam, nunca esqueceu o convento, a cella, o dia de separação. E, ao pé da arvore, junto ao fio limpido d'agua, lhe ouvi mais d'uma vez contar o que sofrera.

      – E dos seus companheiros lembra-se? Teve mais tarde noticias?

      E elle, com os olhos razos de lagrimas:

      – Viveram ainda dispersos por esse mundo. Ha annos, ha muitos annos, recebi, dum d'elles um recado, esta palavra: – «Adeus!» Foi o ultimo!

      Agora acompanhava-o sempre um rapazinho. Com a vida, ia-se-lhe desfeito o burel, rôtos os sapatos. Deixára de dizer missa, mas o povo d'aquelles logares, que é ingenuo e crente, consultava-o nas suas doenças e nos seus sofrimentos. É que D. Joaquim fazia milagres. Excusam de sorrir… O milagre é uma comunicação entre pessoas que têm radicada e viva esta força enorme: – a fé. D. Joaquim da Boa Morte curava as creaturas simples, as mulheres, as creanças e os homens da serra que o iam visitar, com boas palavras, e, quando muito, com alguns cachos de uvas, que elle proprio colhera e lhes distribuia, depois de benzidos.

      Antes de morrer pediu que o enterrassem embrulhado na manta coçada que pertencera a sua mãe e que alli tinha no fundo da arca. Essa velha manta como eu lh'a invejo! Era n'um farrapo assim, com um resto de calor e de ternura, que eu queria ir aconchegado para a terra. Nem a eternidade das eternidades, nem o isolamento, nem o frio dos frios, conseguiriam jamais trespassal-a.

      Que descance em paz. Quem escreve estas linhas deve-lhe uma das maiores, mais elevadas e puras impressões que tem recebido na vida. A sua grande figura só desaparece da terra, depois de ter feito muito bem e estancado muitas lagrimas.

Julho – 1903.

      O Silva Pinto a respeito do Cardia, que ha tres dias, em plena mocidade, meteu uma bala no coração:

      – Eu não faço como elle, não me vou embora, porque tenho duas creanças, o Mario e o Raul. Era de certo a isto que o Manuel se referia ao escrever: «Não faço falta a ninguem». Isto atura-se lá a sangue frio e determinadamente! Matava-me para me ver livre d'estes bandalhos!

      E os olhos enchem-se-lhe de lagrimas, arrasta a perna apegado á bengala, e sacode a cabelleira branca. Parece um trapo ameigado, mas resistente ainda: – Arre bandidos!

      De repente, sem transição, põe-se a rir:

      – Sabe de que me rio? Lembrou-me o Camillo, que tinha uma lingua viperina e dizia mal de toda a gente. Um dia em Seide falei-lhe n'este e naquelle, disse mal de todos. Por fim: – Sempre me refugio em Victor Hugo, para ver se você tambem diz mal d'elle…

      E o mestre:

      – Esse velho não era nada tolo!

      Ri-se. Depois fica outra vez triste:

      – Aquellas paginas de Hugo quando o avô vê entrar o neto ferido pela porta dentro!

*

      O Fialho descrevendo o Cardia, esse rapaz ingenuo, insinuante e espontaneo, que aos dezanove annos se lembra de estourar o coração com uma bala, por causa d'uma reles cantora de quarenta e dous annos – o Fialho diz:

      – …era isto e aquillo e uma mão enorme atirada p'ra aqui e p'ra acolá a toda a gente, apertando a nossa.

      O que nunca mais me esquece são aquelles olhos tristes e a bocca moça sempre a sorrir!..

Fevereiro – 1904.

      Hoje almoço em casa do Schwalbach com o Bulhão Pato, o Camara, João Chagas, Antonio Bandeira, etc. O Bulhão Pato é um homensinho secco e resistente, de cabeleira e pera branca – miniatura do alentado Pato caçador que todos nós imaginamos ao ler-lhe algumas paginas. Parte no dia 20 para S. Miguel, de passeio… Quando morrer desaparece com elle toda uma epocha: – Meu rapaz podes ter lido todos os philosophos, que se não tiveres sentimento… Minha mulher, uma velhinha lá fica… Não vae comigo, porque recolhemos em

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