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a tempestade. Não era nada como a viseira do homem que a tinha possuído. Aquele homem usava uma armadura vermelha com um formato diferente e não havia bondade na sua voz.

      "Eu …", ela começou.

      Então ela sentiu uma fúria dentro de si – a fúria de uma mulher que sabia que estava prestes a morrer. Que não tinha nada a perder.

      "Ele foi-se embora", ela cuspiu, desafiante. Ela sorriu. "E tu nunca o vais ter. Nunca."

      O homem grunhiu de raiva e aproximou-se, puxando de uma espada e esfaqueando-a.

      Rea sentiu a terrível agonia do aço no seu peito e arfou, sem fôlego. Ela sentiu o seu mundo a ficar mais claro, sentiu-se imersa numa luz branca. Ela sabia que aquilo era a morte.

      No entanto, ela não sentiu medo. Na verdade, ela sentiu satisfação. O seu bebé estava seguro.

      E, ao cair de cara no rio, com as águas a ficarem vermelhas, ela sabia que era o fim. A sua dura e curta vida tinha terminado.

      Mas o seu filho viveria para sempre.

*

      Mithka, uma mulher camponesa, estava ajoelhada na margem do rio, com o seu marido ao lado, os dois freneticamente recitando as suas orações, sentindo não ter nenhum outro recurso durante aquela estranha tempestade. Era como se o fim do mundo estivesse sobre eles. A lua cor de vermelho-sangue era um presságio terrível em si – mas aparecendo juntamente com uma tempestade como aquela, bem, era mais do que estranho. Era inédito. Algo importante, ela sabia, estava a acontecer.

      Eles estavam ali juntos, ajoelhados, com a tempestade de vento e neve a bater-lhe nos rostos. Ela rezou pedindo proteção para a sua família. Misericórdia. Perdão por qualquer coisa que pudesse ter feito mal.

      Uma mulher piedosa, Mithka tinha vivido muitos ciclos do sol, tinha vários filhos e tinha uma boa vida. Uma vida pobre, mas boa. Ela era uma mulher decente. Não se metia na vida dos outros, tinha cuidado dos outros e nunca tinha feito mal a ninguém. Ela rezava para que Deus protegesse os seus filhos, a sua casa e os seus, apesar dos seus parcos pertences. Ela inclinou-se e colocou as palmas das mãos na neve, fechou os olhos curvando-se, tocando, seguidamente, com a cabeça no chão. Ela rezou a Deus para lhe mostrar-lhe um sinal.

      Lentamente, levantou a cabeça. Ao fazê-lo, os seus olhos arregalaram-se e o seu coração bateu com o que viu diante de si.

      "Murka!", sibilou.

      O marido virou-se e olhou, também. Ambos ficaram ali ajoelhados, imobilizados, olhando com perplexidade.

      Não podia ser possível. Ela pestanejou várias vezes. Porém, ainda lá estava. Diante deles, trazida pela corrente de água, estava uma cesta flutuante.

      E nessa cesta estava um bebé.

      Um rapaz.

      O seu choro perfurava a noite, ainda mais alto do que a tempestade, mais alto do que os estrondos dos trovões e relâmpagos. Cada grito do seu choro perfurava o seu coração.

      Ela saltou para o rio caminhando pelas gélidas águas que pareciam facas na sua pele, apanhou a cesta e, lutando contra a corrente, voltou para a margem. Olhou para baixo e viu que o bebé estava meticulosamente enrolado num cobertor e que estava milagrosamente seco.

      Ela observou-o mais de perto e ficou perplexa ao ver um pingente de ouro à volta do seu pescoço, com duas cobras circundando uma lua e um punhal entre elas. Ela suspirou; era um pendente que ela reconheceu imediatamente.

      Virou-se para o seu marido.

      "Quem faria uma coisa dessas?", perguntou ela, horrorizada, segurando-o com força contra o seu peito.

      Ele só conseguia abanar a cabeça, atónito.

      "Temos de ficar com ele," ela decidiu.

      O marido franziu a testa e abanou a cabeça.

      "Como?", retrucou. "Não nos podemos dar ao luxo de alimentá-lo. Mal nos podemos dar ao luxo de nos alimentar. Já temos três rapazes – para que é que precisamos de um quarto? O nosso tempo de criar crianças já acabou."

      Mithka, pensando rapidamente, apanhou o espesso pingente de ouro e colocou-o na palma da mão do seu marido, sabendo, depois de todos aqueles anos, o que o iria impressionar. Ele sentiu o peso do ouro na mão, parecendo claramente impressionado.

      "Aqui", ela retrucou, em repulsa. "Aqui está o teu ouro. Ouro suficiente para alimentar a nossa família até sermos velhos e morrermos", disse ela com firmeza. "Eu vou salvar este bebé – quer gostes quer não. Eu não vou deixá-lo morrer."

      Ele continuava a fazer má cara, embora menos certo, quando se ouviu outro relâmpago. Ele observou o céu com medo.

      "E achas que é uma coincidência?", perguntou. "Numa noite como esta, um bebé como este vir a este mundo? Tens alguma ideia de quem estás a segurar?"

      Ele olhou para a criança com medo. E então levantou-se e afastou-se, virando as costas, por fim, indo-se embora, segurando o pingente, claramente desagradado.

      Mas Mithka não cederia. Ela sorriu para o bebé e embalou-o contra o seu peito, aquecendo o seu rosto frio. Lentamente, o seu choro acalmou-se.

      "Uma criança diferente de qualquer um de nós", ela respondeu a ninguém, segurando-o com força. "Uma criança que irá mudar o mundo. E uma a quem eu vou dar o nome: Royce."

      PARTE DOIS

      CAPÍTULO QUATRO

      17 Ciclos Solares mais tarde

      Royce estava no topo da colina, debaixo da única árvore de carvalho que existia naqueles campos de cereais. Uma coisa antiga cujos galhos pareciam chegar ao céu. Olhava profundamente para os olhos de Genevieve, profundamente apaixonado. Eles deram as mãos e ela sorriu-lhe. Aproximaram-se e beijaram-se. Ele sentia reverência e gratidão por estar de coração tão cheio. O dia amanheceu por cima dos campos de cereais e Royce desejava conseguir congelar aquele momento para sempre.

      Royce inclinou-se para trás e olhou para ela. Genevieve era maravilhosa. Aos dezassete anos, tal com ele, ela era alta, magra, com cabelos loiros e olhos verdes inteligentes, com um punhado de sardas nos seus traços delicados. Ela tinha um sorriso que o fazia sentir-se feliz por estar vivo e um riso que o punha à vontade. Mais do que isso, ela tinha uma graciosidade, uma nobreza que superava, de longe, o seu estado de pobre camponês.

      Royce viu o seu reflexo nos olhos dela e ficou maravilhado por parecer que se podia identificar com ela. Ele era muito maior, claro, alto mesmo para a sua idade, com ombros mais largos do que até mesmo os seus irmãos mais velhos, com um queixo forte, um nariz nobre, uma testa altiva, uma abundância de músculo que ondulava por debaixo da sua túnica desgastada, e feições ligeiras, como as dela. O seu cabelo loiro comprido caia pouco acima dos olhos e os seus olhos cor de avelã-esverdeados davam com os dela, embora um tom mais escuro. Ele tinha sido abençoado com uma força e com uma habilidade com a espada que combinava com a dos seus irmãos, embora ele fosse o mais novo dos quatro. O seu pai estava sempre a brincar dizendo que ele tinha caído do céu e Royce entendia: ele não compartilhava os traços escuros dos seus irmãos ou a estatura. Ele era como um estranho na sua própria família.

      Eles abraçaram-se. Sabia tão bem ser abraçado com tanta força, ter alguém que o amava tanto quanto ele a amava a ela. Os dois eram, de facto, inseparáveis desde crianças, haviam crescido juntos a brincar naqueles campos, haviam jurado, mesmo naquela época, que no solstício de verão do seu décimo sétimo ano, se casariam. Enquanto crianças, tinha sido uma promessa verdadeiramente séria.

      À medida que foram crescendo, ano após ano, não se foram afastando, como a maioria das crianças, mas sim aproximando-se mais. Contra todas as probabilidades, o seu voto passou de uma coisa infantil para algo mais forte, solene, inquebrável, ano após ano após ano. As suas vidas, ao que parece, nunca tinham estado destinadas a separarem-se.

      Agora, por fim, incrivelmente, o dia tinha chegado. Ambos tinham dezassete anos, o solstício de verão havia chegado. Agora eles eram adultos, livres para escolher por si mesmo e, ali, debaixo daquela árvore, a ver o sol nascer, cada um deles

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