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na sua simples cama, a transpirar, despertada pelos guinchos que rasgavam a noite. O seu coração batia com força e ela sentou-se no escuro, esperando que não fosse nada, que fosse apenas mais um dos pesadelos que a vinham a assolar. Ela agarrou a borda do seu barato colchão de palha e pôs-se à escuta, a rezar, desejando que a noite ficasse em silêncio.

      Porém, Rea ouviu mais um guincho e encolheu-se.

      Em seguida, mais outro.

      Eles estavam a ficar cada vez mais frequentes – e cada vez mais próximos.

      Em pânico, Rea ficou ali sentada a ouvir os guinchos a aproximarem-se. Acima do som da forte chuva ouvia também o som de cavalos, fraco no início. Depois, ouvia o som característico de espadas a serem desembainhadas. Mas nenhum daqueles sons era mais alto do que os guinchos.

      E, então, um novo som surgiu, um que, se é que era possível, era ainda pior: o crepitar das chamas. Rea ficou desolada ao perceber que a sua aldeia estava a ser incendiada. Isso só poderia significar uma coisa: os nobres tinham chegado.

      Rea saltou da cama, batendo com o joelho nas trempes, o seu único bem na sua simples cabana de um quarto, começando a correr para fora de casa. Ela saiu para a rua lamacenta, para a chuva quente da primavera, que a molhou instantaneamente. No entanto, ela não se importava. Ela pestanejava na escuridão, tentando ainda libertar-se do seu pesadelo. A toda à sua volta, abriam-se persianas, abriam-se portas e os seus companheiros de aldeia saiam hesitantemente das suas casas. Ali estavam todos a olhar para a única e simples estrada sinuosa na aldeia. Rea olhava juntamente com eles. Ao longe avistou um brilho. Ficou preocupada. Era uma chama que se propagava.

      Viver ali, na parte mais pobre da cidade, escondida atrás dos labirintos contorcidos que golpeavam o seu caminho desde a principal praça da cidade, era, num momento como aquele, uma bênção: pelo menos ali ela estaria em segurança. Nunca ninguém ia ali, àquela parte mais pobre da cidade, àquelas casas prestes a desmoronarem-se onde só os servos viviam, onde o mau cheiro das ruas forçava as pessoas a manterem-se à distância. Tinha-se sempre parecido como um gueto de onde Rea não conseguia sair.

      No entanto, enquanto observava as chamas a alumiar a noite, Rea, pela primeira vez, sentia-se aliviada por viver ali atrás, escondida. Os nobres nunca se dariam ao trabalho de tentar navegar pelas ruas labirínticas e becos traseiros que iam até lá. Não havia nada para pilhar ali, afinal.

      Rea sabia que era por isso que os seus vizinhos pobres apenas estavam ali fora das suas casas, sem entrar em pânico, mas apenas assistindo. Era por isso que, também, nenhum deles tinha tentado correr em auxílio dos moradores no centro da cidade, aqueles ricos que os haviam olhado de cima para baixo durante toda a sua vida. Eles não lhes deviam nada. Os pobres ali, pelo menos, estavam a salvo e não arriscariam as suas vidas para salvar aqueles que os haviam tratado como menos do que nada.

      E porém, Rea observava a noite, ficando desconcertada ao ver as chamas a aproximarem-se e a noite a ficar mais brilhante. O brilho estava claramente a espalhar-se, fazendo o seu caminho a rastejar em direção a ela. Ela pestanejou, questionando-se se os seus olhos a estariam a enganar. Não fazia qualquer sentido: os saqueadores parecia estar a caminhar na sua direção.

      Os guinchos ouviam-se cada vez mais, ela tinha certeza disso. Ela estremeceu quando, de repente, a quase uma centena de pés dela, chamas irromperam, emergindo das ruas labirínticas. Ela ficou ali, atordoada: eles estavam a vir na sua direção. Mas porquê?

      Assim que terminou de pensar, um cavalo de batalha a galope trovejou praça adentro, montado por um cavaleiro feroz vestido com uma armadura toda preta. A viseira estava para baixo, o elmo sinistramente em crista. Empunhando uma alabarda, ele parecia um mensageiro da morte.

      Mal entrou na praça, ele baixou a alabarda na direção das costas de um velho corpulento que tentava fugir. O homem não teve sequer tempo de gritar antes de a alabarda lhe cortar a cabeça.

      Os relâmpagos enchiam o céu e os trovões ressoavam, com a chuva a intensificar-se, enquanto mais uma dúzia de cavaleiros invadiu a praça. Um deles erguia um estandarte, que brilhava à luz das tochas, ainda que Rea não conseguisse identificar as insígnias.

      Seguiu-se o caos. Os aldeões entraram em pânico, viraram-se e correram, gritando, alguns a correr de volta para as suas casas por algum instinto remoto, escorregando na lama, alguns a fugir pelos becos. No entanto, mesmo estes não foram muito longe antes de as lanças voadoras encontrarem um lugar nas suas costas. Ela sabia que a morte não pouparia ninguém naquela noite.

      Rea não tentou fugir. Ela simplesmente chegou-se para trás calmamente, enfiou a mão para lá da porta da sua cabana e sacou de uma espada, uma espada longa que lhe tinha sido dada há muito tempo, um belo trabalho de artesanato. O som que a espada fez ao ser desembainhada fez o coração de Rea acelerar. Era uma obra-prima, uma arma que ela não tinha o direito de possuir, herdada de seu pai. Ela não sabia como é que ele próprio a havia obtido.

      Rea caminhou lenta e decididamente para o centro da praça da cidade, a única dos seus aldeões com coragem suficiente para resistir, para enfrentar aqueles homens. Ela, uma frágil menina de dezassete anos de idade, e sozinha, tinha a coragem de lutar perante o medo. Ela não sabia de onde vinha a sua coragem. Ela queria fugir, mas algo profundo dentro dela a proibia de o fazer. Algo dentro dela sempre a levara a enfrentar os seus medos, fossem quais fossem as probabilidades. Não que ela não sentisse pavor; ela sentia-o. Era que outra parte dela permitia-lhe funcionar perante o medo. Desafiando-a a ser mais forte do que ele.

      Rea ficou ali, com as mãos a tremer, mas obrigando-se a manter o foco. E quando o primeiro cavalo galopou na sua direção, ela ergueu a sua espada, aproximou-se, inclinou-se para baixo e cortou as pernas do cavalo.

      Doía-lhe fazê-lo, mutilar aquele lindo animal; afinal ela tinha passado a maior parte da sua vida a cuidar de cavalos. Mas o homem tinha levantado a sua lança e ela sabia que estava em causa a sua sobrevivência.

      O cavalo soltou um guincho horrível que ela sabia que iria ficar consigo o resto dos seus dias. Ele caiu no chão, aterrando de focinho no chão e atirando o seu cavaleiro. Os cavalos que vinham trás embateram nele, tropeçando e estatelando-se no chão num amontoado à volta dela.

      Numa nuvem de poeira e caos, Rea girava e enfrentava-os a todos, pronta para morrer ali.

      Um cavaleiro apenas, numa armadura toda branca, montando um cavalo branco, diferente dos outros, de repente, avançou na sua direção. Ela ergueu a espada para atacar novamente, mas aquele cavaleiro era demasiado rápido. Ele movia-se como um relâmpago. Assim que ela levantou a espada, ele oscilou em arco a sua alabarda para cima, apanhando a lâmina dela, desarmando-a. Ela sentiu-se desamparada quando a sua arma preciosa lhe foi arrancada, navegando num amplo arco através do ar pousando na lama do outro lado da praça. Poderia perfeitamente ter aterrado a um milhão de milhas de distância.

      Rea ficou ali, atordoada por ficar indefesa, mas acima de tudo confusa. Aquele golpe do cavaleiro não tinha tido a intensão de a matar. Porquê?

      Antes de ela terminar o pensamento, o cavaleiro, ainda montado, inclinou-se para baixo e agarrou-a; ela sentiu a sua manopla de metal cravando-se no seu peito quando ele agarrou a sua camisa com as duas mãos e num único movimento ergueu-a para cima do seu cavalo, sentando-a à sua frente. Ela gritou com o choque, aterrando bruscamente no seu cavalo em movimento, firmemente plantada na frente dele, com os braços dele à sua volta, segurando-a com firmeza. Ela mal tinha tempo para pensar, muito menos para respirar. Ele segurava-a com força. Rea contorcia-se, sacudindo-se de um lado para o outro, mas de nada valia. Ele era demasiado forte.

      Ele continuou, atravessando a aldeia a galope, tecendo o seu caminho através das ruas tortuosas, afastando-se da casa dela.

      Eles saíram rapidamente da aldeia para o campo e, de repente, tudo ficou calmo. Eles afastaram-se a galope para cada vez mais longe do caos, da pilhagem, dos gritos. Rea não conseguia deixar de se sentir culpada ao sentir-se momentaneamente aliviada por estar novamente num mundo em paz. Sentia que deveria ter morrido lá atrás, com o povo. No entanto, quando ele a agarrou com mais força, ela percebeu que o seu destino podia ser ainda pior.

      "Por favor", ela esforçou-se por dizer, com dificuldade em saírem-lhe

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