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Carlota Angela. Castelo Branco Camilo
Читать онлайн.Название Carlota Angela
Год выпуска 0
isbn
Автор произведения Castelo Branco Camilo
Жанр Зарубежная классика
Издательство Public Domain
Bem vejo que minha mãe se admira d'esta linguagem, creia que não é falta de respeito, nem confiança nas minhas fracas forças; é animo que me dá um amor puro, e digno de mim; é uma força de que eu preciso para convencer meus paes de que privar-me de casar com Mendonça é o mesmo que matar-me!
Minha mãe não quer que eu morra, e ha de proteger-me, ha de amollecer o duro coração de meu pae, ha de lembrar-lhe que o consentimento dado não póde ser negado sem deshonra para elle, e grandes torturas para mim. Seja por mim, minha querida mãe, seja boa como tem sido sempre. Tenha dó da sua filha unica, da filha que nunca lhe desobedeceu, e, se hoje desobedece, deve ser muito dolorosa a violencia que lhe querem fazer…
Carlota Angela soluçava no seio de D. Rosalia, cujos vasos lacrimaes se romperam copiosamente.
Eram de bom agouro as lagrimas da enternecida mãe.
As difficuldades, que ella oppunha, eram vencidas por novas supplicas de Carlota. D. Rosalia acabara por prometter, com o seu silencio, vencer a resistencia do marido.
Norberto saíra entretanto para o Porto, e fora ao paço do bispo prevenir a magistratura ecclesiastica contra as diligencias de Francisco Salter de Mendonça. Alguem o aconselhou que fizesse entrar sua filha n'um convento, para obviar ao rapto, visto que, dado o passo da fuga, o mais airoso e honesto era remediar a deshonra irreparavel sem o casamento.
D. Rosalia Sampayo tinha uma irmã freira benedictina, no Porto, senhora muito reformada, muito rezadeira, e havida em conta de predestinada, lá dentro, e de religiosa illustrada entre as pessoas das suas relações.
Carlota Angela visitava-a miudas vezes, e entretinha-se longas horas na grade, e até alguns dias dentro do mosteiro, onde sua tia lhe ensinava muitas devoções mirificamente salutares, com as quaes Carlota saía convencida de que, fazendo-as um mez, ganharia indulgencias bastantes para remir das penas do purgatorio toda a christandade.
A madre Rufina, sem desagradar ao seu director espiritual, frade carmelita de poucas lettras e muitas virtudes, era uma tolerante senhora, a quem Carlota confessara a sua inclinação ao official de marinha, resultando-lhe d'ahi ter de rezar, por conselho da tia, mais algumas devoções para que a Virgem lhe inspirasse o melhor destino n'este mundo.
Carlota dizia-lhe que o seu apaixonado era pobre. Madre Rufina replicava que pobre era quem não tinha a graça de Deus. Carlota redarguiu que talvez os paes não a dessem a um rapaz sem dote. A benedictina appellava para a vontade do Altissimo, que fazia tudo pelo melhor. Ora, Carlota Angela, melhor ou peior avisada, entendia que Deus, na maxima parte dos actos humanos, e nomeadamente nos casamentos, não punha nem dispunha. Isto será menos orthodoxo; mas é necessario impor á responsabilidade do homem, ou do diabo, cousas que por ahi ha que não parecem de Deus.
Norberto de Meirelles foi do paço do bispo ao convento de S. Bento da Avè Maria, e fez chamar sua cunhada. Contou a desordem em que se achava sua casa, foi eloquente no seu genero, desafogou a ira abafada em presença da filha, e terminou dizendo que, o mais tardar no dia seguinte, Carlota havia de entrar no convento, onde estaria até se lhe varrer a mania de casar com o tal Pedro-malas-artes.
A madre Rufina respondeu que na casa do Senhor não se recebia ninguem introduzido á força; que sua sobrinha não estava no caso de aceitar com prazer o recolher-se a um convento, quando o seu coração propendia e ligava a outros amores. E concluiu, aconselhando a seu cunhado prudencia e caridade com as inclinações de Carlota, que, se não eram convenientes aos olhos do mundo, tambem não eram peccadoras aos olhos de Deus.
E, em resposta ás impertinentes réplicas de Norberto de Meirelles, a digna esposa do Senhor prometteu chamar sua sobrinha, relatar-lhe as mágoas de seu pae, tentar demovel-a do seu proposito, e pedir muito, primeiro, a Maria Santissima que tocasse o coração de Carlota com a resolução mais conducente ao caminho da virtude n'este mundo, que é o da salvação no outro.
Norberto saiu pouco contrito, e notou que sua cunhada gosava uma reputação usurpada. O homem achava aquelles principios irreconciliaveis com a santidade de que D. Rosalia fazia o panegyrico, todos os dias. Não obstante, a irritação moderou-se-lhe, na esperança de que, em ultimo refugio, seu cunhado doutor faria em Lisboa, com o dinheiro, o que a violencia não conseguisse cá.
A freira pediu ao capellão do mosteiro que lhe acompanhasse sua sobrinha; e teve com ella o seguinte dialogo, quasi textual dos apontamentos de Carlota Angela, que devemos á confidencia de uma sua amiga, de quem logo fallaremos:
–Teu pae, menina, esteve aqui hontem, e fez-me pena. Pediu-me que te despersuadisse do amor a…
–Pediu-lhe um impossivel, minha tia—interrompeu Carlota.
–Nada é impossivel a Deus, minha sobrinha.
–Deus escuta-se na consciencia, e a consciencia não me condemna o coração.
–Mas que te diz ella sobre os deveres de uma filha?
–Diz que tenho satisfeito a todos aquelles em que correspondo aos deveres de pae.
–Não sejas tão absoluta nas tuas respostas, Carlota. A desobediencia é um crime.
–E o suicidio, minha tia?
–O suicidio é o maior dos crimes, porque é o desprezo do divino remedio nas dores passageiras d'esta vida.
–Pois creia que obedecer é morrer; se obedeço, se retiro o meu amor… retirar, meu Deus! eu disse uma loucura! eu não posso retirar o meu amor a Francisco; o mais que posso é mentir; mas essa mentira custa-me a morte… é o suicidio, e mais ainda… é um assassinio, porque eu mato o homem que me é tudo n'esta vida…
Carlota rompeu n'um alto soluçar de lagrimas, que fez chorar a religiosa.
–É escusado—disse esta, após um longo intervallo de silencio, cortado de suspiros—é escusado combater a tua paixão. Eu pedi tanto ao Senhor, em communidade, com algumas santinhas d'esta casa, que te mudasse a tenção, que já agora não posso duvidar que o céo abençôa a tua união com esse mancebo. Já não te reprehendo, nem dissuado, minha sobrinha. Faremos com tua mãe o que não podérmos fazer com o espirito teimoso de teu pae. Enternece-a com as tuas lagrimas, menina; esperta-lhe a compaixão de que está cheio um coração maternal.
–Já o consegui; minha mãe chorou commigo, e prometteu alcançar de meu pae o consentimento que elle já tinha dado.
–Já tinha dado?! a quem?
–A Francisco Salter, quando me foi pedir.
–E depois? desdisse-se!…
–Quando consentiu, foi para dar tempo a meu tio de nos urdir uma traição. Francisco partiu hontem para Lisboa, chamado a toda a pressa. O plano é talvez demoral-o lá; mas de que serve a má fé de meu pae, e as astucias de meu tio? Cá está o meu coração para vencer tudo. Cêdo ou tarde, Francisco voltará, e depois… e depois, se tanto for necessario, fujo de casa.
–Santo nome de Jesus! não digas tal desatino, que offendes a Deus. O teu amor, se tal fizesses, deixaria de ser um sentimento honesto, minha sobrinha. Ha nódoas que nunca se lavam, e intenções boas que deixam sempre uma face má voltada para os juizos severos do mundo. Já agora, filha, esgota todo o teu calix de fel para que se não diga que achaste doçura no crime. Eu entrei de vinte e dois annos n'esta casa, estou cá ha vinte e seis, e ainda me recordo do que era o mundo lá de fóra, e o que lá não aprendi ensinaram-me cá pessoas que entraram para aqui sangrando ainda das chagas que receberam lá.
Carlota, eu hoje não te fallo a linguagem que me ouviste até aos quatorze annos. Conheço o teu coração, e acompanhei-lhe o desenvolvimento mais de perto que teus paes. Tua mãe não te podia entender, porque tua mãe saiu aos quinze annos da companhia de um tio abbade para casar com um homem capaz de lhe abafar a intelligencia,