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de Kadjira que destruia as rozas por prazer. No reinado das fantasias de ouro e de fidalguia com que se entontecem os teus paes em sonhos egoistas, cheguei, como a perversa princeza turca que despetalava rozas, derrocando castellos, para me conter na illusão em que me deleitava sómente com a audiencia da negativa inclemente de tua mãe. Confessou-me que maldava de todo o nosso amor, desde principio. E porque, se assim era, protegia a ampliação de um sentimento que deveria ser, como os filhos defeituosos das ciganas que são atirados ás piranhas, destruido no nascedoiro? Antes que eu lhe communicasse, falou-me em que se correspondias aos meus calculos de matrimonio, era porque, doidivana como toda creança, jogavas a péla na orla do precipicio, esperando o aviso amigo para te retirares gloriosamente… Negarás, Heloisa, que tinhas consciencia de minha pretenção? Sophismarás, em favor da excommunhão que me lançou a tua mãe, e contra a clareza da ordem que me deste afim de se officialisarem as relações do affecto, que nos encaminhava de um illusorio paraiso? Responde com o talento immensuravel com que sempre me amaste…

      – Falas desatinadamente, Christovam, numa contingencia em que deverias possuir o maior tino dos homens.

      – Tens o dom solar de illuminar o mundo pelos flancos, se uma nuvem pesada se antepõe á sua esphera…

      – Sinto-me transfigurada. Amo-te ainda, e não te hei de amar fóra do regosijo delles…

      – Dos teus paes?

      – Sim. Acharias extranho se te dissessem que duas sementes postas em tuas mãos estariam vegetaes só ao sôpro de um fakir indiano. Porque admittirias que a minha vontade fosse forte bastante para romper a marcha das intenções dos meus paes sobre a minha razão de ser mulher? Por ventura sem o sopro do fakir as sementes germinariam e attingiriam as fórmas de seres definitivos? Não supporás que, sem aquelle sôpro, algo se realisasse. Como suppôres que sem a vontade dos meus maiores a nossa união se perpetraria ao teu sabôr?

      – Desconheço-te já…

      – Mas, porque…

      – O sophisma substitue a tua logica: o amor cedeu o posto á quesilia dos outros…

      – Esperarias o meu consorcio sem o consenso dos que me deram a existencia de mulher?

      – Nem sei de mim mesmo que te responda…

      – Não poderias esperar. Se eu fôsse livre, se a lagarta para ser papilio não carecesse de passar por ser chrysalida, nem eu te mandaria impetrar a sancção que nos faltou, nem os que nol-a negaram teriam razões para tal fazer. Aborrece-te o trovão? amedronta-te o curisco? Queres ver-te livre delles? Crê num Deus e pede-lhe a extinção… Infelizmente, Christovam, nem o trovão se extinguiria, nem o teu querer triumpharia… De um lado, Deus seria impotente para te dar o que pedisses porque não terias o direito de pedir… Só pede quem póde pedir; se se pede é porque de quem dá depende o pedido; e se o pedido não é dado, procura a causa na insufficiencia e na sem-razão de quem pediu…

      – Mas…

      – Nada adianta, Christovam. Corresponde ao meu inquerito e nega-me, se conservares a razão, que tenho o bom senso desejavel ás creaturas perfeitas. Queres responder-me?

      – Nada significará o que te responda.

      – É preciso que sejas categorico.

      – Pois sim: responder-te-ei.

      – Poderias tomar-me como tua esposa sem, obteres a minha vontade?

      – Por certo que não.

      – De minha parte a questão é outra: teria eu o direito de responder por mim num caso expresso de matrimonio? poderia ser unico o meu querer?

      – Se quizesses, sim.

      – Não é assim, não. Porque não me tomarias por mulher sem o meu assentimento? Por impoderoso deante de minha definição adversa. Porque não me daria eu por esposa sem o consentimento dos meus paes? Por impoderosa deante da pronuncia delles. Se tu pudesses alcançar de mim o amor sem vontade, desnecessario seria impetrares-m'a; se eu dispuzesse de meu corpo sem a intervenção dos que m'o formaram do nada em materia e em alma, nem cogitaria de enviar-te a elles…

      – É um dilemma sophistico.

      – Por que principio, não sei.

      – Um dia, quando eu te disse que me abrazava na sêde do teu amor, Heloisa, como correspondeste a esse lapso do meu instincto?

      – Do modo mais franco.

      – Sim… Dando-me apaixonadamente os teus labios para nelles, como eu quizesse, matar a sêde que allegava…

      – Dependia de mim. Dei-te.

      – De outra vez pedi-te um testimunho da correspondencia de tua paixão. Negaste-m'o?

      – Não poderia negar.

      – Exactamente. Levaste-me, com todo o carinho, a dextra ao collo, e, na grandeza das iteradas pulsações cordiaes, affirmaste que eu reconheceria a intensidade do teu sentimento…

      – Dependia de mim. Pratiquei.

      – Por fim, quando te acenei com o plano de nossa união…

      – Como te respondi, Christovam?

      – Com a primeira negaça.

      – Adulteras a minha intenção: cumpri o meu dever, enviando-te á maman, como o caminho propicio para vencer o papá.

      – Realmente, Heloisa. Sou um vencido.

      – Garanto-te, porem, Christovam, que te amo, ainda, como te amei…

      – Irresistivel tormento para mim: serei eternamente o artista obrigado a consummar uma grande obra musical sem a inspiração para a realidade do dever…

      – Desistes, então, do teu amor?

      – Razões me sobejam…

      – Que te disse, afinal, a maman?

      – Isso mesmo. Falou-me em que queria um marido para a sua filha e lembrou-me que um musicista não compõe sem ter inspiração…

      – Nada de mais, Christovam!

      – Talvez não queiras comprehendel-a… Mas é tudo que se póde allegar contra um homem…

      E, louco pela musica, inconsciente quasi, CHRISTOVAM DETMER assentou-se ao piano e executou, irreproduzivelmente, a esquisita criação de Gotschalk, ao depois do que, ceremoniosamente, se despediu de HELOISA…

      O VELHO MEDICO

      O mostruario exhibia, garbosamente, os artigos da moda rigorosa.

      ESTEPHANIO e JUDITH – esta desprendendo-se de si no devotamento ao esposo, e aquelle, dominador da mulher vencida em mais annos, como se lhe tivesse o corpo de cór, curvas e linhas, luzes e perfumes – gozavam o esplendor dos luxos, com que o artificio corrige os defeitos da Natureza e apaga os estragos do Tempo…

      MARCO ANTONIO – o medico afamado – cofiando as ennevoadas barbas em que se escondiam as illusões do seu poder curador, arrancou os olhares dos dois esposos, e apoderou-se, com fascinante dominio, de suas attenções…

      – Bem póde a therapeutica dos homens… Vejo-o restituido ao fulgôr da mocidade…

      – É exacto, doutor, passo agora sobre as molestias como a insensivel salamandra por sobre chammas… Descrendo da causa, não posso affectar-me com os seus effeitos: a sua medicina é a criadora das humanas torturas. Parece-me que jà se disse: «Tirem os medicos e as enfermidades desapparecerão»… Mas, eu digo: fugi delles e estou curado. Deem-me milhões de medicos e estarão formados trilhões de doenças.

      – E quem te curou, meu caro?

      – A natureza…

      – O novo deus pagão…

      – Assim diz o dr., mas, de facto, a inexgottavel fonte de poderes curadores. Lembra-se de que o procurei exasperado com o que soffria?

      – Lembro-me,

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