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está desatinado com o amor que te tem. Queres tu que eu lhe fale.

      — Para quê?

      — Para se remediar deste modo a desgraça de todos nós.

      — Estás a brincar, prima! - redargüiu Teresa. - Eu hei de ser tua cunhada quando não tiver coração. Teu mano tem a certeza de que eu amo outro homem. Queria viver para ele; mas, se quiserem que eu morra por ele, abençoarei' todos os meus algozes. Podes dizer isto ao primo Baltasar e dize-lho antes que te esqueça.

      — Então? Vamos! - disse o velho.

      — Estou pronta, meu pai.

      Abriu-se a portaria do mosteiro. Teresa entrou sem uma lágrima. Beijou a mão de seu pai, que ele não ousou recusar-lhe na presença das freiras. Abraçou suas primas, com semblante de regozijo; e, ao fechar-se a porta, exclamou, com grande espanto das monjas:

      — Estou mais livre que nunca. A liberdade do coração é tudo.

      As freiras olharam-se entre si, como se ouvissem na palavra "coração" uma heresia, uma blasfêmia proferida na casa do Senhor.

      — Que diz a menina?! - perguntou a prioresa, fitando-a por cima dos óculos, e apanhando no lenço de Alcobaça a destilação do esturrinho.

      — Disse eu que me sentia aqui muito bem, minha senhora.

      — Não diga - minha senhora - atalhou a escrivã.

      — Como hei de dizer?

      — Diga: "nossa madre prioresa".

      — Pois sim, nossa madre prioresa, disse eu que me sentia aqui muito bem.

      — Mas quem vem para estas casas de Deus não vem para se sentir bem - tornou a nossa madre prioresa.

      — Não?! - disse Teresa com sincera admiração.

      — Quem para aqui vem, menina, há de mortificar o espírito, e deixar lá fora as paixões mundanas. Ora pois! Aqui está a nossa madre mestra de noviças, a quem compete encaminhá-la e dirigi-la.

      Teresa não redargüiu: fez um gesto de respeito à mestra de noviças, e seguiu o caminho que a prelada lhe ia indicando.

      A nossa madre entrou nos seus aposentos, e disse a Teresa que era sua hóspeda enquanto ali estivesse; e ajuntou que não sabia se seu pai escolheria aquele convento ou outro.

      — Que importa que seja um ou outro? - disse Teresa.

      — É conforme. Seu pai pode querer que a menina professe em ordem rica das bentas ou bernardas.

      — Professe! - exclamou Teresa. - Eu não quero ser freira aqui, nem noutra parte.

      — A senhora há de ser o que seu pai quiser que seja.

      — Freira?! A isso não pode ninguém obrigar-me! -recalcitrou Teresa.

      — Isso assim é - retorquiu a prioresa - mas, como a menina tem de noviciado um ano, sobra-lhe tempo para se habituar a esta vida, e verá que não há vida mais descansada para o corpo, nem mais saudável para a alma.

      — Mas a nossa madre - tornou Teresa, sorrindo, como se a ironia lhe fosse habitual - já disse que a estas casas ninguém vem para se sentir bem...

      — É um modo de falar, menina. Todos temos as nossas mortificações e obrigações de coro e de serviços para que nem sempre o espírito está bem disposto. Ora vês aí. Mas, em comparação do que lá vai pelo mundo, o convento é um paraíso. Aqui não há paixões, nem cuidados que tirem o sono, nem a vontade de comer, bendito seja o Senhor! Vive-mos umas com as outras como Deus com os anjos. O que uma quer querem todas. Más línguas é coisa que a menina não há de achar aqui, nem intriguistas, nem murmurações de soalheiro. Enfim, Deus fará o que for servido. Eu vou à cozinha buscar a ceia da menina, e já volto. Aqui a deixo com a senhora madre organista, que é uma pomba, e com a nossa mestra de noviças, que sabe dizer melhor que eu o que é a virtude nestas santas casas.

      Apenas a prioresa voltou as costas, disse a organista à mestra de noviças:

      — Que impostora!

      — E que estúpida! - acudiu a outra. - A menina não se fie nesta trapalhona, e veja se seu pai lhe dá outra companhia enquanto cá estiver, que a prioresa é a maior intriguista do convento. Depois que fez sessenta anos, fala das paixões do mundo como quem as conhece por dentro e por fora. Enquanto foi nova, era a freira que mais escândalos dava na casa; depois de velha era a mais ridícula porque ainda queria amar e ser amada; agora, que está decrépita, anda sempre este mostrengo a fazer missões e a curar indigestões.

      Teresa, apesar da sua dor, não pôde reprimir uma risada, lembrando-se da vida de Deus com os anjos que as esposas do Senhor ali viviam, no dizer da madre prioresa.

      Pouco depois, entrou a prelada com a ceia, e saíram as duas freiras.

      — Que lhe pareceram as duas religiosas que ficaram com a menina? - disse ela a Teresa.

      — Pareceram-me muito bem.

      A velha distendeu os beiços matizados de meandros de esturrinho líquido, e regougou:

      — Hum!... Está feito, está feito!... Ainda não são das piores; mas, se fossem melhores, não se perdia nada... Ora vamos a isto, menina; aqui tem duas pernas de galinha e um caldo que o podem comer os anjos.

      — Eu não como nada, minha senhora - disse Teresa.

      — Ora essa! Não come nada?! Há de comer; sem comer ninguém resiste. Paixões... que as leve o porco-sujo!... As mulheres é que ficam logradas, e eles não têm que perder!... Que eu, cá de mim, até ao presente, Deus louvado, não sei o que sejam paixões; mas quem tem cinqüenta e cinco anos de convento, tem muita experiência do que vê penar às outras doidivanas. E, para não ir mais longe, estas duas que daqui saíram têm pagado bem o seu tributo à asneira, Deus me perdoe, se peco. A organista tem já os seus quarenta bons, e ainda vai ao locutório derreter-se em finezas; a outra, apesar de ser mestra de noviças, à falta doutra que quisesse sê-lo, se eu lhe não andasse com o olho em cima, estragava-me as raparigas.

      Este edificante discurso de caridade foi interrompido pela madre escrivã, que vinha, palitando os dentes, pedir à prelada um copinho de certo vinho estomacal com que todas as noites era brindada.

      — Estava eu a dizer a esta menina as peças que são a organista e a mestra - disse a prioresa.

      — Oh! são para o que eu lhe prestar! Lá foram ambas para a cela da porteira. A esta hora está a menina a ser cortada por aquelas línguas, que não perdoam a ninguém.

      — Vais tu ver se ouves alguma coisa, minha flor? - disse a prelada.

      A escrivã, contente da missão, foi imperceptivelmente ao longo dos dormitórios até parar a uma porta, que não vedava o ruído estridente das risadas.

      No entanto, dizia a prelada a Teresa:

      — Esta escrivã não é má rapariga. Só tem o defeito de se tomar da pingoleta; depois, não há quem a ature. Tem uma boa tença, mas gasta tudo em vinho, e tem ocasiões de entrar no coro a fazer ss que é mesmo uma desgraça. Não tem outro defeito; é uma alma lavada, e amiga da sua amiga. ~ verdade, que, às vezes... (aqui a prelada ergueu-se a escutar nos dormitórios, e fechou por dentro a porta); é verdade que, às vezes, quando anda azoratada, dá por paus e por pedras, e descobre os defeitos das suas amigas. A mim já ela me assacou um aleive, dizendo que eu, quando saía a ares, não ia só a ares, e andava por lá a fazer o que fazem as outras. Forte pouca vergonha! Lá que outra falasse, vá; mas ela, que tem sempre uns namorados pandílhas que bebem com ela na grade, isso lá me custa; mas, enfim, não há ninguém perfeito!... Boa rapariga é ela... se não fosse aquele maldito vício...

      Como tocasse ao coro nesta ocasião, a veneranda prioresa bebeu o segundo cálice do vinho estomacal, e disse a Teresa que a esperasse um quarto de hora, que ela ia ao coro, e pouco se demoraria. Tinha ela saído, quando a escrivã entrou a tempo que Teresa, com as mãos

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