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não se ia esquecer, não por medo, mas por curiosidade.

      Começando a sentir-se aborrecido, retrocedeu até à área que os caçadores estavam a evitar inconscientemente. Esta área estava repleta de escuridão e era um refúgio para onde a escória desta sociedade podia fugir, e se esconder. Dentro da escuridão, o poder esperava e alimentava-se da vida que ali prosperava. Craven ficou à entrada, olhando, antes de atravessar a névoa que viera do oceano em direção à origem do poder autoiludido que descobrira.

      Sim, autoiludido era a palavra perfeita para este poder. O poder era muito confiante, certo do seu domínio na escuridão, e Craven aproximou-se dele, sentindo-se quase feliz. Percorreu a calçada, assimilando os gritos silenciosos de agonia e a dor que a acompanhava.

      As poucas mulheres com quem se cruzou passaram por si, lançando-lhe olhares de desejo, mas mantendo a distância… quase caindo da borda da calçada para o meio do trânsito, ou quase pressionando as costas contra as paredes dos edifícios.

      Com os homens passava-se o mesmo, a não ser pelo facto de que as suas expressões exprimiam tudo, exceto desejo. Medo e ódio pareciam fluir dos seus poros quando olhavam para Craven. Há muito tempo que descobrira que as mulheres mortais o achavam belo e que, por essa razão, os homens tinham inveja. Não sentia nada pelos vivos… Os necromantes raramente se incomodavam com uma alma que ainda estava ligada ao próprio corpo ou a um corpo ainda vivo.

      Por mais desagradável que fosse, Craven concentrava-se agora para conseguir encontrar os demónios mestres que controlavam os vivos. Eles não podiam ser encarados de ânimo leve, uma vez que os seus exércitos podiam também tornar-se numa ameaça para o seu território, no futuro.

      Chegando a uma interseção, permaneceu por um momento na beira da calçada, observando os semáforos. Um gorgolejo profundo chamou-lhe a atenção, bloqueando os sons do tráfego matinal, e virou a cabeça na direção do som. Os seus olhos brilharam de entusiasmo ao antecipar o confronto que se avizinhava. Seguiu o som de um humano gemendo de medo, sabendo que isso o conduziria ao seu objetivo.

      Quando desceu por um pequeno passadiço que conduzia a dois edifícios, entrou num parque de estacionamento, onde uma névoa densa se tinha instalado, retida entre os edifícios. Havia pessoas reunidas num círculo disperso no centro do parque de estacionamento, assistindo a algum tipo de confronto.

      Bastou um breve relance para perceber que os humanos tinham sido possuídos por demónios das sombras. As suas almas ainda estavam intactas, mas os demónios tinham-nas tomado. Craven censurou as fraquezas humanas uma vez mais. Abrindo caminho pelo meio dos humanos possuídos, estacou no limiar do círculo, e viu um demónio das sombras abrindo caminho à força pela boca de uma mulher humana.

      A mulher vestia uma espécie de fato de saia-casaco e os seus pertences estavam espalhados pelo chão à sua volta. O demónio tinha entrado tão fundo na boca dela, que apenas a ponta da sua nuvem negra e brilhante era visível, agitando-se para trás e para a frente. Craven concluíra corretamente que os demónios das sombras estavam a unir esforços para encontrar vítimas… E, ao que parecia, os seus números estavam a crescer rapidamente.

      Inclinou a cabeça em fascínio quando o corpo da mulher se começou a contorcer violentamente devido à intrusão. À medida que a sua batalha contra o inevitável cessava lentamente, os seus olhos rolaram para a parte de trás da cabeça, deixando visível apenas o branco dos olhos por um breve momento, antes de voltarem ao normal… uma possessão total.

      Os lábios de Craven esboçaram um sorriso de entendimento, e suprimiu completamente o seu poder ao sentir a verdadeira ameaça aproximando-se rapidamente. Uma longa faixa de sombra cintilante surgiu na esquina de um dos edifícios em plena luz do dia. Era o que ele pensava. Este demónio era um mestre das sombras…, mas até mesmo as sombras tinham uma fraqueza que podia ser explorada.

      A sombra agregou-se no chão, aos pés da mulher, assemelhando-se a uma poça de alcatrão denso. Agitou-se espessamente durante instantes, antes de uma forma humanoide começar a surgir. A sombra pareceu gotejar, até que finalmente estabilizou, revelando um homem alto de pele escura. Tinha o cabelo cortado rente, e Craven não conseguia ver quaisquer pelos no seu corpo, a não ser um bigode no estilo Fu Manchu.

      O mestre das sombras aproximou-se da mulher, vestindo uma túnica africana preta que dava pelos joelhos e calças folgadas, que se agitavam em torno das pernas. A gola da túnica era ornamentada com linha vermelha e dourada, descartando a necessidade de usar joias, e, no entanto, tinha ao pescoço um grande medalhão dourado e uma argola de ouro na orelha esquerda.

      Baixou a cabeça para olhar para a mulher e estreitou os olhos de um negro denso. "A quem pertences?", perguntou o mestre das sombras, com uma voz de barítono profundo.

      A boca da mulher abriu-se e fechou-se algumas vezes, antes de a voz finalmente se decidir a funcionar devidamente.

      “Pertenço-te a ti… Mestre", afirmou numa voz confusa.

      “Muito bem, agora levanta-te e serve-me.”

      A mulher pôs-se de pé com movimentos sacudidos, como se não estivesse acostumada ao corpo que habitava. De certa forma, esta era uma descrição totalmente exata. Quando um humano era possuído plenamente, no início o demónio das sombras dentro dele não conseguia ter controlo total sobre as funções mais básicas do corpo.

      “O que desejas de mim?”, perguntou a mulher, a sua voz quase normal, mas ainda um pouco atordoada.

      Craven riu de modo sinistro, começando já a ficar saturado destas atividades preliminares. Numa voz condescendente, respondeu à pergunta da mulher: “Ele quer que encontres homens incautos e os tragas aqui, para que também possam ser possuídos e o exército patético dele possa crescer.”

      A mulher e o demónio viraram a cabeça na sua direção, para o encarar. Craven inclinou a cabeça quando os humanos possuídos se viraram também na sua direção. Os olhos deles começaram a ficar repentinamente enevoados, passando, em segundos, de cinzento baço para negro como breu.

      O mestre das sombras olhava-o como se ele fosse uma presa fácil e Craven resistiu ao impulso de rir outra vez. Quão pouco eles sabiam. Esperou pacientemente, enquanto os humanos começavam a dirigir-se lentamente na sua direção. Quando a primeira mão lhe agarrou o ombro, Craven atirou a cabeça para trás e abriu amplamente os braços. Uma vaga de almas começou a sair do seu corpo e atravessou os humanos… emergindo dos possuídos e ficando com os mestres das sombras ao seu alcance.

      Craven não sentia compaixão pelos humanos que estavam possuídos pelo mestre das sombras… libertá-los daqueles que iam eventualmente tentar invadir o seu território era meramente um efeito colateral da supressão da possessão. Reparou que o mestre das sombras fora suficientemente inteligente para permanecer na forma humana, sob a qual as almas não conseguiam tocar-lhe.

      “Que necromante formidável", murmurou o mestre das sombras no seu sotaque carregado. “Mas estás apenas a adiar o inevitável.”

      Craven sorriu. “Isso é bem verdade, talvez deva simplesmente matar-te e acabar com isto.”

      O mestre das sombras soltou um rosnado profundo e lançou-se para Craven. Ele girou para um lado para se desviar de um soco, e depois para o outro, para se esquivar do segundo soco.

      “Demasiado lento”, troçou Craven. Quando o demónio rodou a perna na direção da sua cabeça, Craven dobrou-se para trás, para que o golpe lhe passasse diretamente por cima. Usando o ímpeto de se inclinar para trás, girou sobre as mãos e balançou os pés para cima num salto mortal, acertando com um pontapé duplo no queixo do mestre.

      Craven pôs-se novamente de pé, ao mesmo tempo que o mestre das sombras recuperava o equilíbrio. Uma fina gota de líquido espesso e negro saía do canto da boca do mestre, deixando um rasto até à parte da frente da túnica.

      “Então, tu sangras", provocou Craven. Não tinha culpa de que o mestre das sombras tivesse receio de reverter à sua outra forma. Ia derrotar este demónio de qualquer modo.

      O homem cuspiu para o chão e fitou-o com uma raiva insondável. Sabia que este necromante queria o seu território e recusava-se a desistir. Vivia pelas suas

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