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dois annos na biographia d'este clerigo. Quando, em 1639, o tanoeiro João Bernardes Traga-malhas resolveu aperfeiçoar a sua filha em lettra e leitura, já quando a menina, por muito encorpada, corria perigo em andar na mestra, indagou como cauteloso pae onde houvesse um sacerdote ajustado ao intento.

      Inculcaram-lhe padre Luiz da Silveira, a quem muitos fidalgos confiavam a educação de suas filhas.

      Quiz o Traga-malhas julgar do clerigo pela cara, e desagradou-se da mocidade do mestre; porém, como pegassem de conversar a respeito da soltura do genero humano, o official do ministro Vasconcellos tamanhas lastimas gemeu sobre os peccados do mundo, que o bom João Bernardes ponderou a sua mulher que o mestre de Maria Isabel era o que elle nunca tinha visto em padres.

      Teria vinte e oito annos, ao tempo, o capellão da marqueza de Montalvão. Bem apessoado, limpo no trajar, polido pelo trato da melhor sociedade, sisudo nas fallas, grave e composto com aquelle geito nobre que lhe dera o pulpito, padre Luiz fez-se, a um tempo, respeitar e estimar da discipula.

      Do adiantamento da menina, em materia de escripta, leitura e doutrina, eram sensiveis os effeitos, e bem provada portanto a aptidão tanto do professor como da alumna.

      Maria Isabel, que até então só conhecia em leitura a Primavera de Meninos, do Brochado, por conselho do novo mestre lia o Clarimundo, de João de Barros, e os Contos do Trancoso; e quanto a escripta, sahiu-se muito habilidosamente imitando os Exemplares de diversas sortes de lettras, de Manuel Barata.

      Ora os paes, quando admiravam as rapidas sabensas da filha, graças á assiduidade do mestre, de certo não sentiam sobresaltos que lhes agorentassem a satisfação, lembrando-lhes que houvera no mundo uma discipula muito aproveitada, chamada Heloisa. Se na mente de padre Luiz chammejaram memorias historicas de Pedro Abeilard, e o demonio da imitação entrou com elle, é o que vamos deprehender do capitulo seguinte.

      VI

      Vimos, no capitulo IV, Domingos Leite e Roque da Cunha esquivarem-se rapidamente á presença do marquez de Gouvêa.

      Ao separar-se, o allucinado escrivão murmurou sinistramente ao seu funesto amigo:

      –Conto comtigo, Roque! Se algum de nós faltar ao que deve ao outro, esse seja infame!

      –Seja!—assentiu o sicario de Pedro Barbosa, sacudindo-lhe a mão com a solemnidade cavalheirosa de um pacto de honra.

      D'ali, de Pedroiços, onde o marquez residia, até Lisboa, Domingos Leite não desfitou as esporas dos ilhaes do cavallo. (Nota 10.ª)

      Quando apeava no pateo de sua casa, vinha Maria Izabel, ao longo d'um corredor que conduzia ao jardim, com a menina no collo. A creancinha festejava o pai, batendo palmas, e exuberando de alegria no riso que tanto lhe brincava nos labios como nos olhos. Domingos fitou a mãe com torvo olhar, e apenas de relance olhou para a filha, como se o encaral-a de fito lhe traspassasse a alma.

      –Olha a creancinha como se ri para ti!..—disse Maria Isabel entre meiga e atemorisada, já quando o marido galgava apressadamente as escadas.

      Ella, apesar do susto que lhe arfava o coração, seguiu-o até á ante-camara. Ahi, Domingos Leite, voltando-se para a mulher, e repulsando as caricias da menina, disse-lhe com desabrimento:

      –Largue a creança, e volte, que preciso fallar-lhe!

      –Que modo de me tratar!—acudiu Maria—Tu que tens, Domingos? Que queres dizer-me? Podes fallar, que a tua filha não entende injurias, se m'as queres dizer…

      –A minha filha....—atalhou elle casquinando um froixo de riso por entre os dentes cerrados; e logo, arrugando a testa e alteando a cabeça com intimativa, bradou:

      –Não me percebe!?

      E, arrancando-lhe a filha do collo, sahiu com ella pendente dos braços, fechando a porta da ante-camara para que a mãe a não seguisse em gritos.

      A creança, apesar do repellão, olhava para o pae com a mesma jovialidade. Domingos Leite, que parecia buscar a quem entregasse a menina, parou de repente, aconchegou-a do peito, beijou-a, lavou-a de lagrimas, e, soluçando no seio d'ella, queria talvez evitar que a mulher lhe ouvisse os gemidos. Deteve-se largo espaço assim, até que uma escrava, passando acaso, o surpresou n'aquelle lance. Como vexado da sua fraqueza, Leite Pereira entregou a menina á negra, e, enxugando o rosto, voltou ao quarto onde Maria Isabel estivera em rogos á Virgem, sem todavia saber que soccorros lhe cumpria pedir.

      Entrou o marido, fechou-se por dentro, travou do pulso de Maria, empurrou-a para sobre um preguiceiro, sentou-se á beira d'ella, e disse:

      –Porque treme? A innocencia não costuma assim tremer!… Porque treme?

      –Pois eu vejo-te enfurecido sem saber que mal te fiz!… Sahiste de casa tão contente commigo…

      –Quantas vezes a senhora escarneceu o contentamento com que eu sahia e entrava n'esta casa? Tinha alegria ou remorso de me enganar com juramentos sacrilegos, invocando o testemunho de Deus sobre a innocencia da sua vida de solteira?… Que responde?

      –Voltas ás tuas suspeitas antigas…—balbuciou Maria Isabel, menos affoita do que tinha luctado n'aquella primeira noite.

      –Não me irrite com referencias estupidas ás suspeitas antigas!—redarguiu o marido enfreando as arremettidas da raiva—Diga-me cá, barregan de clerigo, diga-me que conceito formou de mim, quando, depois de eu ter sahido d'aquella alcôva na primeira noite de meu deshonrado consorcio com uma manceba de padre Luiz da Silveira, voltei, passadas poucas horas, e me ajoelhei a seus pés, pedindo-lhe me perdoasse a injuria que fizera á sua puresa de menina solteira?

      Maria Isabel soluçava uns gemidos que a estrangulavam. Elle arrancou-lhe as mãos do rosto, e bradou-lhe:

      –Olhe para mim! Nada de momos! Responda: que juizo fez de mim n'este espaço de tres annos em que a tenho tratado com os extremos de noivo no primeiro dia da sua felicidade? Imaginou que eu fosse um vil, que se habituou á deshonra, a troco de vinte mil cruzados da sua infame mulher? Responda, que o seu silencio obriga-me a arrancar-lhe do coração a resposta!

      –Não…

      –Não… o quê?..

      –Eu nunca te suppuz vil…

      –Suppoz-me então enganado?…

      –Enganado… não…

      –Então, vil… uma das duas coisas… Em que ficamos: vil, conformado com a deshonra, ou enganado, isto é, persuadido de que tinha casado com uma mulher honesta?

      –Meu Deus!—exclamou ella afflictissima—Matae-me, Senhor!—e punha os olhos sinceramente supplicantes na imagem de Jesus.

      –Pois que suppunha?—insistiu Domingos Leite—Cuidou que a sua devassa mocidade seria segredo entre Deus e o padre? Nunca lhe gelaram terrores a alma, prevendo que um acaso viria explicar a rasão que eu tive para a injuriar poucas horas depois que lhe dei o meu nome honrado e a minha vida sem mancha? A senhora deve ter tido remorsos de mentir tão torpemente a um homem que tinha direito a encontrar esposa honrada! Bem sabia que eu não era marido que se vendesse, e trocasse a ignominia da pobresa pela ignominia de uma manceba de clerigo com alguns mil cruzados. Quem a privou de me dizer, quando fallou a só commigo; que na sua vida havia desaires que a prohibiam de amar um homem de bem? Recorde-se… Não lhe disse eu que, apesar de lhe querer com toda a alma d'um primeiro amor, como não acreditava na efficacia dos meus meritos, reflectisse antes de me acceitar como marido, e não viesse para os meus braços com o mais pequeno affecto sacrificado á vontade de seus paes?

      Maria Isabel prostrou-se aos pés do marido, exclamando:

      –Foi verdade…

      –Foi verdade!… e a senhora mentiu-me, cobriu-me de lama, fez-me o successor indissoluvel do padre!.. E que sou eu então diante de si e diante do mundo? A irrisão dos meus inimigos, e a compaixão aviltadora dos meus amigos!…

      E, levantando-se de golpe, sacudiu phreneticamente a mulher, que lhe abraçava os joelhos, e, dados alguns passos, parou em frente d'ella,

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