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Contos. João da Câmara
Читать онлайн.Название Contos
Год выпуска 0
isbn
Автор произведения João da Câmara
Жанр Зарубежная классика
Издательство Public Domain
Contos
AS MÃES
O sol despedia os raios mais vividos. O suão aquecido nas cinzas das queimadas soprava abrazador. Via-se tudo em volta como atravez de vidros amarellos.
O caminho era ruim, apenas indicado por velhos muros afogados em silvas e cheios de musgo como ferrugem, que lindavam as tapadas. No meio da estrada erguiam-se de espaço a espaço enormes panedos, que ainda conservavam os furos das brocas, mostrando um trabalho abandonado de um dia para outro, falta de dinheiro, alguma eleição perdida. Massas enormes de granito esbranquiçado erguiam-se de uma e outra banda, umas por cima das outras, acastelladas. Por entre as pedras cresciam as giestas sequinhosas, cujo fructo crepitava abrindo-se aos beijos do sol e deixava caír a semente na terra. Nos pontos mais elevados resahiam do tremulo azul celeste uns carvalhos rachiticos e tortos, que não davam sombra.
Elle caminhava alegre, estrada fóra, parando de vez em quando para escolher nos cachos das amoras, que relusiam ao sol, as menos maduras, avermelhadas, rijas, cujo acido lhe mitigava a sede.
Ainda vinha com o seu bigode, com as calças de linho e as botas pretas de soldado, em que brilhavam como lentejoulas os pedacinhos de mica do granito desfeito.
O gosto com que elle diria lá na terra ao Antonio: – «Deite-me isto abaixo, ó mestre, e talhe-me n'esta cara uma suissa como a que eu tinha d'antes e a tinha meu pae, que Deus haja.»
E passava a unha pela cara, satisfeito, marcando a suissa que havia de usar.
O gosto com que atiraria para o lado aquellas botas engraxadas, a mortificarem-lhe os pés e que, apesar do bom tamanho, lhe pareciam botas de senhora, boas, quando muito, para o domingo, quando fosse á missa. As botas altas, brancas, de bom salto de prateleira muito commodo e tão bom para andar, lá tinham ficado penduradas n'um prego, defronte da lareira, muito bem ensebadas e recommendadas. Tinham umas tombas, é verdade, mas eram botas amigas. Como havia de calçal-as, contente, para sair com ellas para o trabalho, quando vem rompendo a aurora, quando o céu é cheio de luz e ainda não ha sombras na terra!
Ia morto por voltar aos habitos velhos, á santa vida do campo.
Lembrava-se, cheio de saudades, das boas historias, que se contam pela estrada fóra, na volta do trabalho, caminhando lentamente atraz dos burros, que, de orelhas muito cahidas, projectam na alvura da poeira sombras de gigantes.
O que hão de rir os ganhões com as historias novas que elle traz do quartel!
Quasi ao chegar á villa, ao pé da volta da estrada, um nadinha para baixo, á direita, é a fonte. Quando ali se chega, grita-se chó! aos burros, pára-se um bocado a conversar e contende-se com as raparigas que passam de bilhas á cabeça, bem aprumadas, de ancas fortes e caras sadias, com uns fios de dentes, que o pão de centeio torna muito brancos, como folhinhas de malmequeres, e que ellas gostam muito de mostrar, abrindo em grandes risos, por qualquer dichote amavel, as boccas muito vermelhas, mais frescas e perfumadas que uma ginja.
Aquelle bocado de tempo era sempre o melhor do dia.
E, ao pensar na fonte, alargou o passo.
É coisa aborrecida estar de sentinella duas horas, uma noite de inverno. E a agua pela valeta a correr, barrenta, cheia de espuma, precipitando-se na sargeta, com uma bulha muito triste, muito monotona, tão differente do estrepito das ribeiras quebrando as aguas nos rochedos das voltas!
Elle pensava na fonte e nos taes labios vermelhos. E o tempo assim lá passava mais depressa.
Um outro, ás vezes, tão triste como elle talvez, gritava-lhe de uma guarita perdida na treva:
– Sentinella, álérta!
E elle respondia, engrossando a voz:
– Álérta está!.. Sentinella álérta!
E, emquanto os gritos repetidos se iam perdendo ao longe, recahia no mesmo pensar constante, a fonte, sempre a fonte, e triste, sempre triste.
Mas afinal estava livre! N'aquella mesma tarde, á hora em que as chaminés começam fumegando e debaixo das parreiras, emquanto a ceia aquece, se toca alegremente nas businas, estaria batendo á porta de casa, disfarçando a voz, fingindo ser um pobresinho a pedir esmola e agasalho.
E ria feliz com aquella idéa divertida.
A alegria da mãe! Era capaz de morrer de gosto a pobre velha, coitadinha!
Sabe Deus, quantas vezes, quando elle pelas madrugadas frias tremia enregelado na guarita, não molhava ella com lagrimas o travesseiro, a chorar a sua pobreza.
Recebera duas cartas d'ella muito ternas, cheias de noticias e de conselhos. Pedia a todos que lh'as lessem e por fim sabias-as de cór; trazia-as sempre comsigo entre a fardeta e a camisa, mettidas n'um saquinho de coiro, para se não estragarem.
E, ao lembrar-se de que afinal o tempo, de que tantas saudades tivera, ia novamente voltar, enchia-se-lhe a alma de alegria, e caminhava ligeiro, cantando em voz de falsete uma cantiga do S. João.
Ainda lhe faltavam tres leguas para chegar a casa.
Aquelles sitios já eram d'elle muito conhecidos. Lembrava-se perfeitamente de que, por detraz d'aquellas pedras, que lhe ficavam á esquerda, crescia basta a herva, regada pela agua de uma fontesita, onde, por mais de uma vez, de madrugada, quando ali andava guardando as cabras da viuva, viera armar aos passarinhos.
Não havia sitio melhor para descançar um bocado.
No fardel trazia um pedaço de pão e o conducto, meia duzia de azeitonas e um queijinho pequeno.
É comer! E, se nos der o somno, dorme-se uma sésta até que abrande o calor!
Saiu da estrada galgando a parede e encaminhou-se para a fonte, pondo em fuga as cotovias, muito mansas, muito alegres, que saltitavam nas pedras, emquanto muito alto, parecendo pontos negros no azul do ceu, umas poucas de aguias descreviam curvas enormes, com a mira n'um burro morto, que apodrecia entre os rochedos.
Quando accordou, já o sol descera muito; o vento tinha virado para o norte e algum tanto abrandára o calor.
Do outro lado do cabeço ouvia-se um som de chocalhinhos. Eram as cabras da viuva, que andavam pastando. No alto, d'onde a propriedade se descobria quasi toda, um pastorito de dez annos, deitado sobre as pedras, com o chapéo de abas largas, todo roto, a servir-lhe de travesseiro, fazia dançar um bogalho na ponta esmagada de uma palha de centeio, por onde soprava.
Sensibilisou-o tal recordação da infancia, que ali passára como aquelle pequeno.
– Adeus, ó cachopinho! gritou.
– Saude! respondeu o pequeno.
Teria dormido duas horas e achava-se completamente descançado. Ergueu-se, espreguiçou-se, coçou desesperadamente a cabeça, bateu com os pés no chão para desentorpecer as pernas e porfim, agarrando no chapéo e no bordão, poz-se alegremente a caminho.
Como por ali não havia vinhas, e isto era no mez das vindimas, não encontrára ninguem por aquelles sitios, abandonados até ao tempo das sementeiras.
Caminhava depressa, batendo com o bordão nas pedras, querendo chegar a casa antes do anoitecer.
Faltava-lhe ainda quasi uma legua, quando o sol se escondeu.
As calhandras tinham erguido o vôo e trinavam doidamente, muito alto, constantes no mesmo logar, batendo muito as azas.
Chegou a uma encruzilhada e parou. Parecia estar em duvida sobre o caminho que havia de tomar. Passava a mão pela cara, devagarinho, sem se resolver. O caminho da esquerda parecia tental-o muito, sorria-se para elle, mas como quem tem medo de ceder á tentação.
E que tentação não era!.. Se nunca mais vira uns olhos d'aquelle azul!
A pobre mãe, áquellas horas, sentada á porta de casa, cruzadas sobre os joelhos as mãos, onde umas veias em relevo resaem sobre uma rede confusa de rugas pequeninas, pensava n'elle talvez, cheia de amor e de quantas tristezas! Quem passava por defronte da porta tirava o chapéo áquelles cabellos brancos, muito bem alisados por debaixo do lenço negro da viuva. N'aquelles olhos meio apagados brilhavam talvez as lagrimas d'uma saudade…