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QUARENTA E OITO

      PRÓLOGO

      Sentado no carro, o homem dava sinais de alguma preocupação. Ele sabia que tinha que se apressar. Naquela noite era importante que tudo corresse bem. A grande questão era saber se a mulher seguiria aquele percurso à hora habitual.

      Eram onze horas da noite e o momento aproximava-se.

      O homem recordou-se da voz que ouvira, uma voz que ecoara na sua cabeça antes de chegar àquele local. A voz do avô.

      “Espero que tenhas razão quanto ao horário dela, Mafarrico.”

      Mafarrico. O homem sentado no carro não gostava daquela forma de tratamento. Não era o seu nome. Era um dos nomes que se dava ao diabo com origem no folclore popular. Para o avô, ele não era mais do que uma “semente maligna”.

      O avô chamara-o de Mafarrico desde sempre. Apesar de todas as outras pessoas o chamarem pelo seu nome, o nome que lhe ficara gravado de forma mais profunda fora Mafarrico. Ele odiava o avô, mas não o conseguia tirar da cabeça.

      Mafarrico esbofeteou-se várias vezes numa tentativa de fazer desaparecer aquela voz.

      Doera e, por alguns instantes, fora inundado por uma sensação de calma.

      Apesar do riso monótono do avô ainda ecoar algures dentro de si, naquele momento parecia ter-se esbatido ligeiramente.

      Olhou ansiosamente para o relógio. Passavam alguns minutos das onze. Será que ela se atrasaria? Iria para outro lugar? Não, não era o seu estilo. Ele vigiara os seus movimentos durante vários dias e constatara que era sempre pontual e mantinha sempre a mesma rotina.

      Se ao menos ela soubesse tudo o que estava em jogo. O avô castigá-lo-ia se estragasse tudo. Mas era mais do que isso. O próprio mundo parecia ter os dias contados. A sua responsabilidade era enorme e Mafarrico sentia esse peso indelevelmente.

      Entretanto, luzes de faróis trespassaram a escuridão da estrada e o homem suspirou de alívio. Só podia ser ela.

      Aquela estrada rural fazia ligação a poucas casas. Estava quase sempre deserta àquela hora da noite, exceto no momento em que a mulher regressava do trabalho em direção à casa onde alugara um quarto.

      Mafarrico dispusera o seu carro de forma a ficar de frente para o da mulher e parou-o bem no meio daquela pequena estrada de terra batida. O homem estava fora do carro com as mãos a tremer, manuseando uma lanterna sobre o capô, esperando que o estratagema resultasse.

      O seu coração bateu com mais força quando o carro da mulher passou ao lado do seu.

      Para! Pediu ele, silenciosamente. Para, por favor!

      E logo de seguida o carro parou a pouca distância do seu.

      O homem reprimiu um sorriso.

      Mafarrico virou-se e olhou em direção às luzes. Sim, era o carrinho maltrapilho da mulher, tal como previra.

      Agora, restava-lhe apenas atraí-la até ele.

      Ela baixou o vidro, ele encarou-a e sorriu-lhe de forma agradável.

      “Parece que fiquei apeado,” Disse ele.

      Apontou de forma descontraída a lanterna na direção do seu rosto. Sim, não havia dúvida de que era ela.

      Mafarrico reparou que ela tinha um rosto encantador e franco. Mais importante de tudo, ela era muito magra, algo que ia ao encontro do que pretendia.

      Era uma pena o que teria que lhe fazer. Mas era como o avô sempre dissera: “É para o bem comum.”

      Era verdade e Mafarrico sabia-o. Se a mulher ao menos compreendesse, talvez até estivesse disposta a sacrificar-se. Afinal de contas, o sacrifício era uma das mais nobres caraterísticas da natureza humana. Ela devia dar-se por contente por poder contribuir.

      Mas ele sabia que isso seria esperar demais. As coisas iriam desenrolar-se de forma violenta e confusa, como aliás sempre acontecia.

      “O que se passa?” Perguntou a mulher.

      A forma como a mulher falava tinha algo de apelativo, mas ainda não percebera o quê.

      “Não sei,” Respondeu. “Morreu.”

      A mulher espreitou para fora da janela. Ele olhou diretamente para ela. O seu rosto sardento emoldurado por uma cabeleira ruiva e encaracolada, era aberto e sorridente. Não parecia estar minimamente incomodada com o inconveniente.

      Mas confiaria o suficiente para sair do carro? Se as outras mulheres servissem como barómetro, provavelmente sim.

      O avô dizia-lhe constantemente que era feio e ele não conseguia evitar pensar em si dessa forma. Mas também sabia que as outras pessoas – sobretudo as mulheres – consideravam-no bem-parecido.

      O homem gesticulou na direção do capô aberto. “Não percebo nada de carros,” Disse-lhe.

      “Nem eu,” Respondeu a mulher.

      “Bem, talvez os dois consigamos descobrir o que se passa,” Disse ele. “Não se importa de tentar?”

      “De maneira nenhuma, mas não pense que vou ser grande ajuda.”

      Ela abriu a porta, saiu do carro e caminhou na direção do homem. Sim, tudo corria na perfeição. Conseguira atraí-la para fora do carro. Mas ainda corria contra o tempo.

      “Vamos lá ver isto,” Disse ela, colocando-se ao seu lado e olhando para o motor.

      E então o homem compreendeu o que lhe agradara na sua voz.

      “Tem um sotaque interessante,” Disse ele. “É Escocesa?”

      “Irlandesa,” Declarou agradavelmente. “Só cá estou há dois meses, tenho uma carta verde para trabalhar com uma família.”

      Ele sorriu. “Bem-vinda à América,” Disse.

      “Obrigada. Até agora estou a adorar.”

      Ele apontou para o motor.

      “Espere lá,” Disse o homem. “O que é aquilo?”

      A mulher inclinou-se para ver melhor. E ele soltou o apoio e bateu o capô contra a sua cabeça com estrondo.

      De seguida, abriu o capô, esperando que não tivesse que lhe bater novamente com ele. Felizmente, a mulher já estava inconsciente com o rosto e tronco estirados contra o motor.

      Olhou à sua volta. Ninguém à vista. Ninguém vira o sucedido.

      Estremeceu com prazer.

      Pegou na mulher ao colo, reparando que o rosto e vestido estavam agora manchados com óleo. Era leve como uma pena. Contornou o carro e deitou-a no banco de trás.

      E ao fazê-lo teve a certeza de que esta iria servir bem os seus propósitos.

      *

      Quando Meara começou a recuperar a consciência, ouviu um ruído ensurdecedor. Parecia uma mistura infindável de sons. Gongos, sinos, chilreares e diversas melodias que pareciam sair de dezenas de caixas de música. Todos os sons pareciam deliberadamente hostis.

      Abriu os olhos, mas não conseguiu ver nada. A cabeça explodia de dor.

      Onde estou? Pensou.

      Algures em Dublin? Não, não perdera a noção de tempo. Viera de lá há dois meses e começara a trabalhar mal se instalara. Estava no Delaware. Com algum esforço lembrou-se de ter parado o carro para ajudar um homem. Depois algo acontecera. Algo mau.

      Que lugar era aquele com todo aquele ruído horrível?

      Apercebeu-se que estava a ser levada ao colo como uma criança. Ouviu a voz do homem que a transportava, uma voz que se sobrepunha ao barulho.

      “Não te preocupes,

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