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sco Manuel de Melo Ficalho

      Memorias sobre a influencia dos descobrimentos portuguezes no conhecimento das plantas / I. – Memoria sobre a Malagueta

      INTRODUCÇÃO

      Os descobrimentos dos portuguezes nos seculos XV e XVI constituem uma das feições mais salientes da época, porventura a mais notavel da historia. N'aquelle periodo em que o espirito humano, quebrando as peias das severas e estreitas tradicções da edade média, e parecendo ter a intuição de tudo quanto é elevado e bello, abre novos horisontes nas sciencias, nas lettras e nas artes; os limites do mundo physico tornam-se, como os do mundo moral, apertados para as aspirações de uma grande e forte geração, e rasgam-se com elles, perante o seu singular poder expansivo. Um povo pequeno, situado no extremo occidental do mundo até então explorado, lançando-se em perigosas e heroicas aventuras nos mares incognitos e tenebrosos, dá o primeiro impulso a uma serie de descobrimentos, que, em menos de um seculo, dobram perante as nações maravilhadas a extenção das terras conhecidas. Mares e climas novos, raças humanas ignoradas, animaes e vegetaes estranhos e variados se patenteiam, em rapida successão, a uma geração curiosa e avida de informações. Mais de uma vez se tem apontado, o quanto estes novos aspectos do mundo physico deviam influir nos animos, alargando as idéas e destruindo antigos preconceitos; mas não cabe n'este trabalho o quadro, nem mesmo o esboço, de taes transformações.

      Limitando-nos rigorosamente ao nosso assumpto, é licito affirmar, que em época alguma se accrescentaram tantas e tão variadas fórmas vegetaes ao peculio das já conhecidas. A vegetação inteiramente nova das terras de[4] Santa Cruz, ou da Africa meridional, e as ricas floras da India, do archipelago malayo e da China, antes apenas entrevistas e agora observadas de perto, enriqueceram, por modo sem egual em tão curto periodo, o conhecimento do mundo vegetal.

      É certo, que as plantas se não estudaram então systematicamente, e muitos annos decorreram, antes que as fórmas vegetaes se grupassem com methodo, e se descrevessem com rigor. Todavia, grande numero de ricos e uteis productos vegetaes attrairam desde logo as attenções, e encontramos dispersas nas obras dos navegadores e escriptores portuguezes e hespanhoes, muitas noticias curiosas, e muitas informações exactas, sobre a sua naturesa e a sua origem. Basta citar, entre muitos outros, Duarte Barbosa, Thomé Pires, Garcia da Orta, Christovão da Costa, Oviedo, e Nicolau Monardes para provar com quanto interesse, e em muitos casos, com que espirito do rigor scientifico se observam as plantas então descobertas.

      Estudar sob este ponto de vista a historia dos nossos descobrimentos, e do nosso dominio nas terras da Africa, da Asia e da America, buscando nos documentos contemporaneos as provas do conhecimento que os portuguezes tiveram dos vegetaes, e esclarecendo á luz da moderna sciencia alguns pontos duvidosos ou obscuros das suas narrações, seria sem duvida muito interessante e util. Ao interesse, que se liga á elucidação de mais uma consequencia d'aquelle grande facto historico reune-se uma verdadeira utilidade scientifica, porque as sciencias naturaes não vivem só do presente, não se desenvolvem unicamente pelas recentes observações, e pelas descripções de novas especies, mas vivem tambem do passado, e adquirem vigor e auctoridade, quando os periodos do seu aperfeiçoamento se prendem ás successivas phases da evolução do espirito humano.

      Considerado este estudo de um modo geral, daria logar a um trabalho em extremo difficil e longo, pois só teria valor quando apoiado em provas, que demandam investigações. É, porém, possivel reunir pouco a pouco materiaes para esse trabalho de maior vulto, em noticias especiaes sobre plantas, regiões, ou épocas particulares. Eis o que tentei n'esta memoria em relação a uma planta, que teve uma época de celebridade.

      Refiro-me ao Amomum Granum paradisi, cujas sementes foram conhecidas dos nossos navegadores sob o nome da malagueta. Esta substancia tem hoje[5] pouca importancia, e quasi anda esquecido o seu nome e applicado vulgarmente aos fructos de outra planta, que, com a malagueta da Africa, não tem relações nem semelhança. Não succedeu porém sempre assim, e, como ao diante veremos, foi droga muito procurada e apreciada. Das especiarias, que na edade média gozavam de nomeada, foi a malagueta a primeira que os navegadores portugueses encontraram logo no começo dos seus descobrimentos, e a primeira de cujo trafico se senhorearam desviando-o dos caminhos até então seguidos, e tanta importancia adquiriu nas suas mãos, que uma parte do litoral africano veiu a receber o nome de Costa da Malagueta. Primeira, na data do descobrimento, entre as especiarias que enriqueceram o nosso commercio, pareceu-me que a malagueta devia ser o assumpto d'esta primeira memoria.[6]

      [7]

      I

      Do conhecimento que houve da malagueta antes e durante as viagens dos portuguezes

      É muitas vezes difficil, e não poucas impossivel, averiguar a que plantas se referem os auctores antigos, encontrando-se em suas descripções, quasi sempre vagas, muitas causas de duvida, mórmente quando tratam de drogas vindas de regiões afastadas, e de que tinham imperfeito conhecimento. Theophrasto, e mais tarde Dioscorides e Plinio, nomeiam diversas drogas aromaticas e pungentes, e tiveram noticia, entre outras, da pimenta e do cardamomo. É certo, que algumas inexactidões na relação dada d'estas plantas, particularmente por Plinio, nos levam a crer que confundissem sob a mesma designação productos de diversas origens vegetaes; não ha porém motivo para suppor que entre esses productos figurasse a malagueta, attendendo sobretudo á obscuridade, que ainda no tempo de Plinio envolvia as terras d'onde é natural1.[8]

      Encontramos nos livros de medicina e materia medica de alguns escriptores arabes, como por exemplo nos de Serapio e de Avicenna, mencionadas diversas drogas africanas. Na época, em que estes celebrados medicos composeram as suas obras, isto é do IX e X seculo em diante, já os productos do Sudan começavam a ser conhecidos no Egypto, e na Africa septentrional pelas viagens, que faziam as kafilas de mercadores através do Sahará, e parece provavel, que a malagueta fosse um d'esses productos. As referencias muito succintas, que se encontra em seus livros, deixam-nos porém, na maior parte dos casos, em muita incerteza e não temos fundamento para affirmar que a conhecessem e descrevessem, antes temos razão para suppor, ou pela descripção das drogas, ou pela indicação da sua procedencia, que se referiam a outras substancias vegetaes2.

      A primeira menção da droga pelo nome ainda hoje usado, de que tenho noticia, é do começo do XIII seculo, e encontra-se casualmente na descripção[9] de uma festa celebrada em Treviso no anno de 1214. Figurou n'esta especie de justa, ou torneio uma fortaleza ricamente ornada, cuja defeza estava entregue a doze das mais illustres e mais formosas senhoras, accompanhadas de suas donzellas, e que devia ser assaltada pelos moços cavalleiros, armados de flores, aguas aromaticas e custosas especiarias; infelizmente o fingido assalto transformou-se em seria peleja, porque os cavalleiros paduanos e venezianos, pressurosos, como é bem de crer, de correrem ao combate, se desavieram entre si, ficando alguns mal feridos na contenda, e rotos os estandartes de suas cidades. Entre as especiarias enumeradas na relação d'esta festa figura a melegeta3. Depois d'esta primeira menção encontramos numerosas indicações de quanto aquella substancia foi conhecida e usada durante a edade média.

      No mesmo seculo XIII, Nicolau Myrepso, medico do imperador João III, na côrte de Nicaea, receitava a μευεγεται4, e o seu comtemporaneo Simão de Genova, estabelecido em Roma, falla da melegete ou melegette5. Com o nome de grana paradisi, pelo qual tambem era conhecida, vem mencionada entre as especiarias vendidas em Lyão no anno de 1245; egualmente em uma pauta ou tarifa de direitos cobrados em Dordrecht na Hollanda, em 1358; e ainda entre os condimentos usados por João II rei de França, durante o seu captiveiro em Inglaterra6. Sabemos tambem pelo curioso livro de Francesco Balducci Pegolotti, escripto pelo anno de 1340, que era importada em algumas cidades do sul da França, como Nimes e Montpellier7.

      Era esta droga apreciada como medicamento e como condimento, e junta[10] ao gengivre e á canella empregada na preparação do vinho adubado, chamado hippocras, muito em uso na edade média8.

      As caravanas arabes,

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<p>1</p>

Theophrasto menciona o χαρδαμωμον como procedente da India (Hist. pl. IX, 7, p. 147. ed. Wimmer) e egualmente o πεπερι (H. pl. IX, 20, p. 162). Dioscorides falla das mesmas substancias (lib. I, cap. V, p. 15 e cap. CLXXXVIII, p. 298 ed. Sprengel). Veja-se tambem Plinio (Hist. nat. L. XII, cap. VII et XIII). Laguna, nos seus commentarios a Dioscorides, pretendeu identificar um dos cardamomos do auctor grego com a malagueta. É porém erro manifesto, e que não passou inadvertido pelo nosso Garcia da Orta (Colloq. dos simples etc., p. 50 ed. 1872). Em quanto ao χμωμον dos antigos, é planta muito duvidosa, mas parece ser o Cissus vitiginea L. e em todo o caso é muito afastada d'aquellas especies que depois, por errada applicação do nome, se gruparam no genero Amomum. Veja-se o erudito commentario de Sprengel no seu Dioscorides (tom. II, p. 345, 352 e 475). Veja-se tambem a (Synopes pl. fl. classicae. de C. Fraas, p. 198 e 278).

<p>2</p>

Serapio (De simpl. med. opus etc. pars II. 327. ed. Othonis Brunfelsii 1531.) falla de uma droga, a que dá o nome de hab el zelim e tambem segundo a Cyclopaedia de Rees e o dr. Hooker (Fl. nigr. p. 206) o de fulful alsuadem, (deve antes ler-se felfel el sudan pimenta da terra dos negros). Esta substancia tem sido geralmente identificada com o Piper AEthiopicum de Matthioli, e o Piper nigrorum Serapioni de Bauhinio, que é uma Anonacea, a Xylopia AEthiopica (Veja-se o que disse nas Noticias sobre alguns pr. veg. da Afr. Portugueza no Jornal de Sc. math. etc. num. XXII 1877. p. 105). A verdade é, que Serapio na citada passagem se refere a tres substancias diversas: uma o hab el zelim tambem chamado Piper nigrorum (felfel el sudan): outra o verdadeiro Piper nigrorum a que na Barbaria chamam croni: e uma terceira das terras de Chedensor chamada habese. Se uma d'estas subtancias é a Xylopia Æthiopica, as outras são de mui difficil identificação pela deficiencia das indicações.

No celebre Canon de Ibn Sina (Avicenna) vem mencionado o hab al zelem ou hab al zelim, que alguns referiram á droga mencionada com o mesmo nome por Serapio, e outros ao hab al zizi, a que os venezianos chamavam dolceghini e que parece ser um Cyperus. (Vid. a edição de Avicenna de Benedicto Rinio, Basileæ 1556, nos indices dos nomes arabes, tanto da antiga exposição, como da interpretação do Bellunense, e tambem a edição de Plempio de 1658).

Garcia da Orta falla de uma substancia, que (Avicenna) chama Combubague e diz que essa substancia é a malagueta (Collq. dos simpl. p. 51). Parece-me que o nosso auctor laborou em erro n'esta asserção. A substancia que Avicenna chama, não Combusbague, mas chair bawe como diz Clusio (Exotiorum libri etc., p. 249, ed. 1605) ou chir hawa (Ed. de Plempio 1658), vinha de Sofala e era semelhante ao Cacolla, ou antes Khakhalá, isto é a um dos Cardamomos da India. Julgo que Avicenna se referia ou ao Amomum angustifolium de Sonnerat, de Madagascar e da costa oriental da Africa, ou ao Amomum Korarima de Pereira, da Abyssinia e do paiz dos Gallas, mas não ao Amomum Granum paradisi, que produz a verdadeira malagueta e habita a Africa occidental.

<p>3</p>

Transcrevo, por curiosa, a lista das substancias usadas no assalto: «rosis, liliis et violis, similiter ampullis balsami, amphii et aquæ rosæ, ambra, camphora, cardamo, cymino, garyofolis, melegetis, cunctis immo florum vel speciérum genéribus, quæumque redolent vel splendescunt.» Rolandinus Patavinus. (De factis in marchia Tarvisana. Lib I, cap. XIII. ap. Muratori Rer. It. scrip. t. VIII, p. 180).

<p>4</p>

Nicolai Mirepsi Alex. medic. opus etc. a L. Fuchsio etc. De antidotis p. 19. Lugduni 1550. É de notar que Mirepso distingue a malagueta do cardamomo e outras drogas que entram na composição do seu medicamento.

<p>5</p>

Clavis sanationis, Venet. 1510 citado por Flück. e Hanbury (Pharmac.)

<p>6</p>

Documentos citados por Flück. e Hanbury (Pharmac. p. 590).

<p>7</p>

Balducci Pegolotti era feitor da casa ou companhia commercial dos Bardi de Florença, e como tal muito versado no tracto de mercadorias do mediterraneo. O manuscripto do seu livro existe na Bibliotheca Riccardiana de Florença, e foi publicado em um tratado intitulado Della decima e di varie altre gravezze imposte dal commune di Firenze, cujo auctor parece ser Pagnini. No mesmo tractado vem inserido outro livro commercial, escripto pelo anno de 1440 por G. da Uzzano, aonde tambem se mencionam as malaguetas. Veja-se uma noticia do auctor e extractos do livro na obra do coronel H. Yule (Cathay and the way thither, p. 280 e Appendix III).

<p>8</p>

Na Form of cury., manuscripto do chefe das cozinhas de Ricardo II de Inglaterra, do anno de 1390 vem a receita do hippocras. Veja-se Flük. et Hanbury (Pharmac. p. 479).