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      A Morgadinha dos Cannaviaes

      A MORGADINHA DOS CANNAVIAES

      I

      Ao cair de uma tarde de dezembro, de sincero e genuino dezembro, chuvoso, frio, açoutado do sul e sem contrafeitos sorrisos de primavera, subiam dois viandantes a encosta de um monte por a estreita e sinuosa vereda, que pretenciosamente gosava das honras de estrada, á falta de competidora, em que melhor coubessem.

      Era nos extremos do Minho e onde esta risonha e feracissima provincia começa já a resentir-se, senão ainda nos valles e planuras, nos visos dos outeiros pelo menos, da vizinhança de sua irmã, a alpestre e severa Traz-os-Montes.

      O sitio, n'aquelle ponto, tinha o aspecto solitario, melancolico, e, n'essa tarde, quasi sinistro. D'alli a qualquer povoação importante, e com nome em carta corographica, estendiam-se milhas de pouco transitaveis caminhos. Vestigios de existencia humana raro se encontravam. Só de longe em longe, a choça do pegureiro ou a cabana do rachador, mas estas tão ermas e desamparadas, que mais entristeciam do que a absoluta solidão.

      Não se moviam em perfeita igualdade de condições os dois viandantes, que dissemos.

      Um, o mais moço e pela apparencia o de mais grada posição social, era transportado n'um pouco esculptural, mas possante muar, de inquietas orelhas, musculos de marmore e articulações fieis; o outro seguia a pé, ao lado d'elle, competindo, nas grandes passadas que devoravam o caminho, com a quadrupedante alimaria, cujos brios, além d'isso, excitava por estimulos menos brandos do que os da simples e nobre emulação.

      Contra o que seria plausivel esperar d'este desigual processo de transporte, dos dois o menos extenuado e impaciente com as longuras e fadigas da jornada não se pode dizer que fôsse o cavalleiro.

      A postura de abatimento que lhe tomára o corpo, o olhar melancolico, fito nas orelhas do macho, a indifferença, a taciturnidade ou o manifesto mau humor, que nem as bellezas e accidentes da paizagem natural conseguiam já desvanecer, o obstinado silencio que apenas de quando em quando interrompia com uma phrase curta mas energica, com uma pergunta impaciente sobre o termo da jornada, contrastavam com a viveza de gestos e desempenado jôgo de membros do pedestre, com a sua torrencial verbosidade, a que não oppunha diques, e com as joviaes cantigas e minuciosas informações a respeito de tudo, por meio das quaes se encarregava de entreter e ao mesmo tempo instruir o seu sorumbatico companheiro.

      Explica-se bem esta differença, dizendo que o cavalleiro era um elegante rapaz de Lisboa, que fazia então a sua primeira jornada, e o outro um almocreve de profissão.

      O leitor provavelmente ha de ter jornadeado alguma vez; sabe portanto que o grato e quasi voluptuoso alvoroço, com que se concebe e planisa qualquer projecto de viagem, assim como a suave recordação que d'ella guardamos depois, são coisas de incomparavelmente muito maiores delicias, do que as impressões experimentadas no proprio momento de nos vermos errantes em plena estrada ou pernoitando nas estalagens, e mórmente nas classicas estalagens das nossas provincias. As pequenas impertinencias, em que se não pensa antes, que se esquecem depois, ou que a saudade consegue até dourar e poetisar a seu modo; esses microscopicos martyrios, que de longe não avultam, actuam-nos, na occasião, a ponto de nos inhabilitar para o gôso do que é realmente bello. A dureza do colchão, em que se dorme, do albardão ou selim sobre que se monta, o tempêro ou destempêro do heteróclito cozinhado com que se enche o estomago, a lama que nos encrusta até os cabellos, o pó que se nos insinua até os pulmões, o frio que nos inteiriça os membros, o sol que nos congestiona o cerebro, tudo então nos desafina o espirito, que traziamos na tensão necessaria para vibrar perante as maravilhas da natureza ou da arte.

      Só pelo preço de muitas jornadas se compra o habito de ficar impassivel no meio dos episodios d'estas pequenas odyssêas, que atormentam e exhaurem o animo dos Ulysses novatos; mas ai, quando se adquire esse habito, tambem nos achamos já com a sensibilidade mais embotada para as commoções do bello.

      Examina-se com mais minuciosidade, mas com menos enthusiasmo; analysa-se mais e melhor; porém a propria analyse é a prova de que se sente menos. Onde domina o sentimento e a imaginação, mal teem cabida a paciencia e phleúgma, necessarias aos processos analyticos. O homem positivo e frio recolhe de qualquer excursão á patria com a carteira cheia de apontamentos; o enthusiasta e poeta nem uma data regista. Viu menos, sentiu mais.

      Mas Henrique de Souzellas – que era este o nome do cavalleiro – fôra educado e passado da infancia á plena juventude, em Lisboa, levantando-se por avançada manhã, frequentando o theatro, o Gremio, as camaras, parolando no Chiado ou no Rocio, e indo alguns dias no anno a Cintra, ou qualquer praia de banhos, desenfadar-se da monotonia da capital.

      Desde que fazia perfeito e consciente uso da razão, fôra esta jornada, em que o encontramos, a primeira levada a effeito, e logo sob tão maus auspicios, que era para suffocar-lhe á nascença os instinctos de touriste, se porventura quizessem despertar n'elle.

      Havia dois dias que cavalgava aquelle rocinante, unico vehiculo accommodado aos caminhos por que passára. E então que dois dias! D'aquelles, durante os quaes o céo, uniformemente pardo, parece desfazer-se em agua, e a chuva cae sem interrupção e com uma teimosia e constancia impacientadoras; d'aquelles em que a terra saciada rejeita já a agua que recebe, a qual escorre nos declives, transborda dos algares, e encharca-se nos terrenos baixos, transformando em brejos as lezirias; em que as lufadas do sul vergam e torcem os ramos, melancolicamente despidos, dos álamos e sobreiros, e emprestam aos pinheiraes a voz dos mares; em que os campos se mostram desertos, a noite se anticipa, e tão densas nuvens cobrem o firmamento, que parece tomar-nos a persuasão de que nunca mais o veremos com as suas formosas vestes de azul.

      Vejam se, n'estas circumstancias, o pobre rapaz podia deixar de ir cabisbaixo, triste e dando ao diabo a viagem que commettera.

      E para quê e por quê a commettera elle assim?

      Em poucas palavras procuraremos satisfazer a natural interrogação, que é de suppôr nos dirigissem os leitores, se podessem fazel-o.

      Este Henrique de Souzellas attingira a idade dos vinte e sete annos, vivendo, como dissémos, aquella enlanguescedora vida da capital, e dividindo as attenções do espiri Este Henrique de Souzellas attingira a idade dos vinte e sete annos, vivendo, como dissémos, aquella enlanguescedora vida da capital, e dividindo as attenções do espirito pela politica, pela litteratura e pelos destinos do theatro de S. Carlos, do qual estava habilitado a fazer circumstanciada chronica, que abrangesse os ultimos dez annos.

      Não concebia vida fóra d'aquillo.

      O mundo para elle era Lisboa. Não sentia desejos, nem imaginava possibilidade de visitar a Europa, quanto mais a provincia; o que seria maior façanha.

      Não que lhe faltassem recursos para realisar qualquer projecto d'esta natureza.

      Henrique herdára dos paes rendimentos bastantes, dos quaes vivia folgadamente e sem precisar de sacrificar nos altares da economia.

      Mas a indolencia lisbonense manietava-o alli. A poucos ia tão direita a apostrophe de Garrett aos seus «queridos alfacinhas», a qual se pode ler no livro setimo das Viagens.

      De certo tempo em deante começou, porém, a incommodal-o uma especie de vácuo interior, um mal-estar, doença infallivel nos celibatarios sem familia, quando chegam á idade a que chegou Henrique, e passam a vida como elle.

      Tudo lhe causava fastio. Bocejava em S. Carlos, bocejava nas camaras, bocejava no Gremio, bocejava no Suisso, no Chiado e nos circulos dos seus amigos, os quaes principiaram tambem a achal-o insupportavel de insipidez; porque poucas coisas ha que mais perturbem o espirito, do que o espectaculo d'um homem que boceja ou dorme, onde e quando os outros forcejam por divertir-se.

      O demonio da hypocondria, esse demonio negro e lugubre, implacavel verdugo dos ociosos e egoistas, o qual havia muito o espiava, apoderou-se d'elle em corpo e alma.

      Ahi temos, desde esse instante, Henrique muito preoccupado com a sua pessoa, imaginando-se victima de mil e uma molestias, as mais disparatadas e incompativeis, suspeitando-se conjunctamente predestinado para a apoplexia e para a phtisica, para o cancro e para a alienação, para a cegueira e para as aneurismas, tremendo á leitura do obituario da semana, folheando livros de medicina, construindo theorias physiologicas,

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