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de rei.”

      Eu dou uma olhada no sofá e vejo que Bree já está adormecida. Fico aliviada. Talvez tenha sido o fogo, ou a janta. Dormir é o que ela mais precisa agora para se recuperar. Eu tiro meu cachecol que estava bem enrolado em meu pescoço e o coloco, gentilmente, sobre seu peito. Finalmente, seu pequeno corpo para de tremer.

      Eu coloco uma última lenha no fogo, sento de volta na cadeira e giro, encarando as chamas. Eu a vejo ser consumida e gostaria de ter trazido mais lenha para baixo. Mas é melhor assim. Será mais seguro dessa maneira.

      Um tronco estala enquanto eu me acomodo, me sentindo mais relaxada do que não sinto em anos. Às vezes, depois que Bree adormece, eu pego o meu livro e o leio para mim. Eu o vejo ali, no chão: O Senhor das Moscas. É o único livro que me sobrou e está tão surrado pelo uso que parece ter uns cem anos. É uma sensação esquisita, ter apenas um livro restante no mundo. Faz-me perceber como eu subestimei tudo, me faz sentir saudades das bibliotecas.

      Hoje, me sinto muito agitada para ler. Minha mente está acelerada, cheia de pensamentos para amanhã, sobre nossa nova vida, no alto da montanha. Eu continuo pensando em todas as coisas que vou precisar transportar daqui para lá e como eu farei isso. Há nossas coisas básicas: utensílios, fósforos, o que sobraram das velas, lençóis e colchões. Fora isso, nenhuma de nós tem muitas roupas e, tirando nossos livros, não temos pertences. Esta casa estava bem vazia quando chegamos, por isso não há nenhum enfeite. Eu gostaria de poder levar este sofá e esta cadeira, mas sei que precisarei da ajuda de Bree para isso e terei que esperar até que ela esteja se sentindo melhor. Teremos que fazer tudo por etapas, levando o essencial primeiro e deixando a mobília por último. Mas isto é o de menos: desde que estejamos lá em cima, seguras e a salvo. É isso que realmente importa.

      Eu começo a pensar em todas as coisas que posso fazer para aquela casinha se tornar ainda mais segura. Certamente irei encontrar uma maneira de criar persianas para aquelas janelas escancaradas, para que eu possa fechá-las quando necessário. Olho a minha volta, buscando por algo em nossa casa que possa ser utilizado. Precisaria de dobradiças para que as persianas funcionassem, então olho para as dobradiças da porta da sala de estar. Talvez eu consiga removê-las. E já que terei que fazê-lo, talvez eu possa utilizar esta porta e serrá-la em pedaços.

      Quanto mais eu olho a minha volta, mais eu percebo quantas coisas posso resgatar aqui. Eu lembro que papai deixou uma caixa de ferramentas na garagem, com um serrote, martelo, chave de fenda até uma caixa de pregos. É um de nossos bens mais preciosos então farei uma nota mental para não esquecer de levá-la.

      Depois, é claro, da motocicleta. Isso que não sai da minha cabeça: quando transportá-la e como. Eu não consigo suportar a ideia de deixá-la para trás, nem por um minuto. Então, em nossa primeira viagem para cima, eu a levarei. Não posso ligá-la e, assim, chamar atenção – além disso, a montanha é muito íngreme para que eu consiga pilotá-la para lá. Eu terei que andar com ela, montanha acima. Já consigo imaginar como isso será cansativo, especialmente com a neve. Mas não vejo outro jeito. Se Bree não estivesse doente, ela me poderia me ajudar, mas no atual estado em que ela se encontra, não poderá levar nada – suspeito até que eu terei que carregá-la. Percebo que não temos alternativa a não ser esperar amanhã à noite, para que a escuridão nos acoberte antes de nos mudarmos. Talvez eu esteja sendo paranoica – as chances de alguém nos ver são remotas, mas, ainda assim, é melhor ter cuidado. Especialmente porque eu sei que há outros sobreviventes por aqui. Tenho certeza.

      Lembro-me do primeiro dia em que chegamos. Estávamos as duas assustadas, desamparadas e exaustas. Naquela primeira noite, fomos dormir de barriga vazia, eu me perguntava como iríamos sobreviver. Teria sido um erro deixar Manhattan, abandonar nossa mãe, deixar tudo que conhecíamos para trás?

      E então, em nossa primeira manhã, eu acordei, abri a porta e me assustei ao ver, bem na minha frente, uma carcaça de um cervo. A princípio, tive medo. Encarei aquilo como uma ameaça, um aviso, supus que alguém estivesse nos mandando embora, que não éramos benvindas aqui. Mas, depois do susto inicial, entendi que não era nada disso, aquilo se tratava, na verdade, de um presente. Alguém, algum outro sobrevivente, esteve nos observando. Ele deve ter percebido como parecíamos desesperadas e, em um ato de extrema generosidade, decidiu nos dar essa caça, nossa primeira refeição, carne suficiente para durar por semanas. Não consigo imaginar o quão valioso isso devia ser para ele.

      Recordo-me de andar lá fora, olhando em todas as partes, para cima e para baixo da montanha, procurando em todas as árvores, esperando que alguém aparecesse e me saudasse. Mas ninguém apareceu. Tudo que eu vi foram árvores e, mesmo esperando por alguns minutos, tudo que eu ouvi foi silêncio. Mas, eu sabia, eu simplesmente sabia, que eu estava sendo observada. Sabia que havia mais gente aqui em cima, sobrevivendo, exatamente como nós.

      Desde então, senti um tipo de orgulho, senti que éramos parte de uma comunidade silenciosa de sobreviventes isolados que vivem por estas montanhas, sendo reclusos, nunca falando uns com os outros, com medo de sermos vistos, com medo de ficarmos visíveis a algum comerciante de escravos. Acredito que é assim que os outros sobreviveram até agora: não correndo nenhum risco. No começo, eu não entendia isso. Mas agora, eu agradeço. E, desde então, mesmo sem ver ninguém, nunca me senti sozinha.

      Mas isso também me fez mais vigilante; esses outros sobreviventes, se ainda estiverem vivos, devem, com certeza, estar com tanta fome e se sentindo tão desesperados como nós. Especialmente nos meses de inverno. Quem sabe se a fome, se a necessidade de defender suas famílias, os levou ao extremo do desespero, se seu jeito caridoso foi substituído por um instinto de sobrevivência? Eu sei que, pensar em Bree, Sasha e em mim mesma, morrendo de fome, às vezes, me levou a ter uns pensamentos bem desesperados. Por isso eu não quero correr nenhum risco. Vamos nos mudar à noite.

      O que funcionará perfeitamente, de qualquer forma. Eu preciso aproveitar a manhã para subir até lá, sozinha, explorar primeiro e me certificar uma vez mais que ninguém entrou nem saiu de lá. Também preciso voltar para o local aonde encontrei o cervo e esperar por ele. Eu sei que é um tiro no escuro, mas se eu puder encontrá-lo de novo e matá-lo, poderemos comer por semanas. Eu desperdicei o primeiro cervo que recebemos, anos atrás porque eu não sabia como retirar sua pele, nem como cortá-lo, nem como preservá-lo. Fiz uma sujeira com ele e consegui apenar aproveitar uma refeição antes de a carcaça inteira apodrecer. Foi um terrível desperdício de comida e estou determinada a nunca mais fazer isso. Desta vez, especialmente com a neve, vou achar um jeito de conservá-lo.

      Coloco a mão no meu bolso e tiro a faca que papai me deu antes de partir. Passo a mão pela empunhadura gasta, sentindo suas iniciais gravadas e o logo da Marinha estampado, tenho feito isso todos os dias desde que chegamos. Digo para mim mesma que ele ainda está vivo. Mesmo após todos estes anos, mesmo sabendo que as chances de vê-lo novamente sejam quase zero, eu não consigo deixar de pensar nessa possibilidade.

      Desejo toda as noites que meu pai não tivesse partido, que ele nunca tivesse se voluntariado para a guerra. Para começo de conversa, foi uma guerra idiota. Nunca realmente compreendi como iniciou e ainda não sei. Papai me explicou, várias vezes, e eu ainda não entendo. Talvez fosse por causa de minha idade. Talvez eu não tivesse idade suficiente para entender as coisas sem sentido que os adultos podem fazer um com os outros.

      Do jeito que papai explicou, foi a Segunda Guerra Civil – desta vez, não foi entre e o Norte e o Sul, mas entre partidos políticos. Entre os Democratas e o Republicanos. Ele disse que era uma guerra que estava por vir fazia tempo. Durante os últimos cem anos, ele disse, os Estados Unidos esteve à deriva em uma terra de duas nações: aqueles de extrema direita e aqueles de extrema esquerda. Com o passar do tempo,  as posições se firmaram tão fortemente que o país se tornou uma nação de ideologias opostas.

      Papai falou que o pessoal de esquerda, os Democratas, queriam uma nação dirigida por um governo cada vez maior, que aumentaria os impostos para 70% e estaria envolvido em todos os aspectos das vidas das pessoas. Ele disse que o pessoal de direita, os Republicanos, queriam um governo cada vez menor, que iria abolir todos os impostos, não perturbaria o povo e o deixaria a sua própria sorte. Ele disse que, com o tempo, essas duas ideologias diferentes, ao invés de se comprometerem, se distanciavam cada vez mais, ficando mais radicais

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