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o Sá-Carneiro

      DISPERSÃO

      I. PARTIDA

      Ao ver escoar-se a vida humanamente

      Em suas aguas certas, eu hesito,

      E detenho-me ás vezes na torrente

      Das coisas geniais em que medito.

      Afronta-me um desejo de fugir

      Ao misterio que é meu e me seduz.

      Mas logo me triunfo. A sua luz

      Não ha muitos que a saibam reflectir.

      A minh’alma nostalgica de àlem,

      Cheia de orgulho, ensombra-se entretanto,

      Aos meus olhos ungidos sobe um pranto

      Que tenho a força de sumir tambem.

      Porque eu reajo. A vida, a natureza,

      Que são para o artista? Coisa alguma.

      O que devemos é saltar na bruma,

      Correr no asul á busca da beleza.

      É subir, é subir àlem dos ceus

      Que as nossas almas só acumularam,

      E prostrados resar, em sonho, ao Deus

      Que as nossas mãos de aureola lá douraram.

      É partir sem temor contra a montanha

      Cingidos de quimera e d’irreal;

      Brandir a espada fulva e medieval,

      A cada hora acastelando em Espanha.

      É suscitar côres endoidecidas,

      Ser garra imperial enclavinhada,

      E numa extrema-unção d’alma ampliada,

      Viajar outros sentidos, outras vidas.

      Ser coluna de fumo, astro perdido,

      Forçar os turbilhões aladamente,

      Ser ramo de palmeira, agua nascente

      E arco de ouro e chama distendido…

      Asa longinqua a sacudir loucura,

      Nuvem precoce de subtil vapor,

      Ansia revolta de misterio e olor,

      Sombra, vertigem, ascensão – Altura!

      E eu dou-me todo neste fim de tarde

      Á espira aerea que me eleva aos cumes.

      Doido de esfinges o horizonte arde,

      Mas fico ileso entre clarões e gumes!…

      Miragem rôxa de nimbado encanto —

      Sinto os meus olhos a volver-se em espaço!

      Alastro, venço, chego e ultrapasso;

      Sou labirinto, sou licorne e acanto.

      Sei a Distancia, compreendo o Ar;

      Sou chuva de ouro e sou espasmo de luz;

      Sou taça de cristal lançada ao mar,

      Diadema e timbre, elmo rial e cruz…

      . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

      O bando das quimeras longe assoma…

      Que apoteose imensa pelos ceus!

      A côr já não é côr – é som e aroma!

      Vem-me saudades de ter sido Deus…

* * * * *

      Ao triunfo maior, àvante pois!

      O meu destino é outro – é alto e é raro.

      Unicamente custa muito caro:

      A tristeza de nunca sermos dois…

      Paris – fevereiro de 1913.

      II. ESCAVAÇÃO

      Numa ansia de ter alguma cousa,

      Divago por mim mesmo a procurar,

      Desço-me todo, em vão, sem nada achar,

      E a minh’alma perdida não repousa.

      Nada tendo, decido-me a criar:

      Brando a espada: sou luz harmoniosa

      E chama genial que tudo ousa

      Unicamente á força de sonhar…

      Mas a vitória fulva esvai-se logo…

      E cinzas, cinzas só, em vez do fogo…

      – Onde existo que não existo em mim?

      . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

      Um cemiterio falso sem ossadas,

      Noites d’amor sem bôcas esmagadas —

      Tudo outro espasmo que principio ou fim…

      Paris 1913 – maio 3.

      III. INTER-SONHO

      Numa incerta melodia

      Toda a minh’alma se esconde.

      Reminiscencias de Aonde

      Perturbam-me em nostalgia…

      Manhã d’armas! Manhã d’armas!

      Romaria! Romaria!

      . . . . . . . . . . . . . . .

      Tacteio… dobro… resvalo…

      . . . . . . . . . . . . . . .

      Princesas de fantasia

      Desencantam-se das flores…

      . . . . . . . . . . . . . . .

      Que pesadelo tão bom…

      . . . . . . . . . . . . . . .

      Pressinto um grande intervalo,

      Deliro todas as côres,

      Vivo em roxo e morro em som…

      Paris 1913 – maio 6.

      IV. ALCOOL

      Guilhotinas, pelouros e castelos

      Resvalam longemente em procissão;

      Volteiam-me crepusclos amarelos,

      Mordidos, doentios de roxidão.

      Batem asas d’aureola aos meus ouvidos,

      Grifam-me sons de côr e de perfumes,

      Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,

      Desce-me a alma, sangram-me os sentidos.

      Respiro-me no ar que ao longe vem,

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