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falava arrastando as sílabas, com um doce sorriso e um olhar vago.

      — É para uma festa... Qual é a que você sabe?

      A neta que até ali ouvia calada a conversa animou-se a dizer alguma coisa, deixando perceber rapidamente a fiada reluzente de seus dentes imaculados:

      — Vovó já não se lembra.

      O general, que a velha chamava coronel, por tê-la conhecido nesse posto, não atendeu a observação da moça e insistiu:

      — Qual esquecida, o quê! Deve saber ainda alguma coisa, não é, titia?

      — Só sei o "Bicho Tutu", disse a velha.

      — Cante lá!

      — Ioiô sabe! Não sabe? Quá, sabe!

      — Não sei, cante. Se eu soubesse não vinha aqui. Pergunte aqui ao meu amigo, o Major Policarpo, se sei.

      Quaresma fez com a cabeça sinal afirmativo e a preta velha, talvez com grandes saudades do tempo em que era escrava e ama de alguma grande casa, farta e rica, ergueu a cabeça, como para melhor recordar-se, e entoou:

      É vêm tutu

      Por detrás do murundu

      Pra cumê sinhozinho

      Com bucado de angu.

      — Ora! fez o general com enfado, isso é coisa antiga de embalar crianças. Você não sabe outra?

      — Não, sinhô. Já mi esqueceu.

      Os dois saíram tristes. Quaresma vinha desanimado. Como é que o povo não guardava as tradições de trinta anos passados? Com que rapidez morriam assim na sua lembrança os seus folgares e as suas canções? Era bem um sinal de fraqueza, uma demonstração de inferioridade diante daqueles povos tenazes que os guardam durante séculos! Tornava-se preciso reagir, desenvolver o culto das tradições, mantê-las sempre vivazes nas memórias e nos costumes...

      Albernaz vinha contrariado. Contava arranjar um número bom para a festa que ia dar, e escapava-lhe. Era quase a esperança de casamento de uma das quatro filhas que se ia, das quatro, porque uma delas já estava garantida, graças a Deus.

      O crepúsculo chegava e eles entraram em casa mergulhados na melancolia da hora.

      A decepção, porém, demorou dias. Cavalcânti, o noivo de Ismênia, informou que nas imediações morava um literato, teimoso cultivador dos contos e canções populares do Brasil. Foram a ele. Era um velho poeta que teve sua fama ai pelos setenta e tantos, homem doce e ingênuo que se deixara esquecer em vida, como poeta, e agora se entretinha em publicar coleções que ninguém lia, de contos, canções, adágios e ditados populares.

      Foi grande a sua alegria quando soube o objeto da visita daqueles senhores. Quaresma estava animado e falou com calor; e Albernaz também, porque via na sua festa, com um número de folklore, meio de chamar a atenção sobre sua casa, atrair gente e... casar as filhas.

      A sala em que foram recebidos, era ampla; mas estava tão cheia de mesas, estantes, pejadas de livros, pastas, latas, que mal se podia mover nela. Numa lata lia-se: Santa Ana dos Tocos; numa pasta: São Bonifácio do Cabresto.

      — Os senhores não sabem, disse o velho poeta, que riqueza é a nossa poesia popular! que surpresas ela reserva!... Ainda há dias recebi uma carta de Urubu-de-Baixo com uma linda canção. Querem ver?

      O colecionador revolveu pastas e afinal trouxe de lá um papel onde leu:

      Se Deus enxergasse pobre

      Não me deixaria assim:

      Dava no coração dela

      Um lugarzinho pra mim,

      O amor que tenho por ela

      Já não cabe no meu peito;

      Sai-me pelos olhos afora

      Voa às nuvens direito.

      — Não é bonito?... Muito! Se os senhores conhecessem então o ciclo do macaco, a coleção de histórias que o povo tem sobre o símio?... Oh! Uma verdadeira epopéia cômica!

      Quaresma olhava para o velho poeta com o espanto satisfeito de alguém que encontrou um semelhante no deserto; e Albernaz, um momento contagiado pela paixão do folclorista, tinha mais inteligência no olhar com que o encarava,

      O velho poeta guardou a canção de Urubu-de-Baixo, numa pasta; e foi logo à outra, donde tirou várias folhas de papel. Veio até junto aos dois visitantes e disse-lhes:

      — Vou ler aos senhores uma pequena história do macaco, das muitas que o nosso povo conta... Só eu já tenho perto de quarenta e pretendo publicá-las, sob o título Histórias do Mestre Simão.

      E, sem perguntar se os incomodava ou se estavam dispostos a ouvir, começou:

      "O macaco perante o juiz de direito. Andava um bando de macacos em troça, pulando de árvore em árvore, nas bordas de uma grota. Eis senão quando, um deles vê no fundo uma onça que lá caíra. Os macacos se enternecem e resolvem salvá-la. Para isso, arrancaram cipós, emendaram-nos bem, amarraram a corda assim feita à cintura de cada um deles e atiraram uma das pontas à onça. Com o esforço reunido de todos, conseguiram içá- la e logo se desamarraram, fugindo. Um deles, porém, não o pôde fazer a tempo e a onça segurou-o imediatamente.

      — Compadre Macaco, disse ela, tenha paciência. Estou com fome e você vai fazer-me o favor de deixar-se comer.

      O macaco rogou, instou, chorou; mas a onça parecia inflexível, Simão então lembrou que a demanda fosse resolvida pelo juiz de direito. Foram a ele; o macaco sempre agarrado pela onça. É juiz de direito entre os animais, o jabuti, cujas audiências são dadas à borda dos rios, colocando-se ele em cima de uma pedra. Os dois chegaram e o macaco expôs as suas razões.

      O jabuti ouvi-o e no fim ordenou:

      — Bata palmas.

      Apesar de seguro pela onça, o macaco pôde assim mesmo bater palmas. Chegou a vez da onça, que também expôs as suas razões e motivos. O juiz, como da primeira vez, determinou ao felino:

      — Bata palmas.

      A onça não teve remédio senão largar o macaco, que se escapou, e também o juiz, atirando-se n'água".

      Acabando a leitura, o velho dirigiu-se aos dois:

      — Não acham interessante? Muito! Há no nosso povo muita invenção, muita criação, verdadeiro material para fabliaux interessantes... No dia em que aparecer um literato de gênio que o fixe numa forma imortal... Ah! Então!

      Dizendo isto, brincava nas suas faces um demorado sorriso de satisfação e nos seus olhos abrolhavam duas lágrimas furtivas.

      — Agora, continuou ele, depois de passada a emoção - vamos ao que serve. O "Boi Espácio" ou o "Bumba-meu-Boi" ainda é muita coisa para vocês... É melhor irmos devagar, começar pelo mais fácil... Está aí o "Tangolomango", conhecem?

      — Não, disseram os dois.

      — É divertido. Arranjem dez crianças, uma máscara de velho, uma roupa estrambólica para um dos senhores, que eu ensaio.

      O dia chegou. A casa do general estava cheia. Cavalcânti viera; e ele e a noiva, à parte, no vão de uma janela, pareciam ser os únicos que não tinham interesse pela folia. Ele, falando muito, cheio de trejeitos no olhar; ela, meio fria, deitando de quando em quando, para o noivo, um olhar de gratidão.

      Quaresma fez o "Tangolomango", isto é, vestiu uma velha sobrecasaca do general, pôs uma imensa máscara de velho, agarrou-se a um bordão curvo, em forma de báculo, e entrou na sala. As dez crianças cantaram em coro:

      Uma mãe teve dez filhos

      Todos os dez dentro de um pote:

      Deu o Tangolomango nele

      Não ficaram senão nove.

      Por aí, o major avançava,

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