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aquele falar sem nexo, sem acordo com que se realizava fora dele e com os atos passados, um falar que não se sabia donde vinha, donde saia, de que ponto do seu ser tomava nascimento! E o pavor do doce Quaresma? Um pavor de quem viu um cataclismo, que o fazia tremer todo, desde os pés à cabeça e enchia-o de indiferença para tudo mais que não fosse o seu próprio delírio.

      A casa, os livros e os seus interesses de dinheiro andavam à matroca. Para ele, nada disso valia, nada disso tinha existência e importância. Eram sombras, aparências; o real eram os inimigos, os inimigos terríveis cujos nomes o seu delírio não chegava a criar. A velha irmã, atarantada, atordoada, sem direção, sem saber que alvitre tomar. Educada em casa sempre com um homem ao lado, o pai, depois o irmão, ela não sabia lidar com o mundo, com negócios, com as autoridades e pessoas influentes. Ao mesmo tempo, na sua inexperiência e ternura de irmã, oscilava entre a crença de que aquilo fosse verdade e a suspeita de que fosse loucura pura e simples.

      Se não fosse seu pai (e Olga amava mais por isso o seu rude pai) que se interessava, chamando a si os interesses da família e evitando a demissão de que estava ameaçado, transformando-a em aposentadoria, que seria dele? Como é fácil na vida tudo ruir! Aquele homem pautado, regrado, honesto, com emprego seguro, tinha uma aparência inabalável; entretanto bastou um grãozinho de sandice...

      Estava há uns meses no hospício, o seu padrinho, e a irmã não o podia visitar. Era tal o seu abalo de nervos, era tal a emoção ao vê-lo ali naquela meia-prisão, decaído dele mesmo que um ataque se seguia e não podia ser evitado.

      Vinham ela e o pai, às vezes o pai só, algumas vezes Ricardo, e eram só os três a visitá-lo.

      Aquele domingo estava particularmente lindo, principalmente em Botafogo, nas proximidades do mar e das montanhas altas que se recortavam num céu de seda. O ar era macio e docemente o sol faiscava nas calçadas.

      O pai vinha lendo os jornais e ela, pensando, de quando em quando, folheando as revistas ilustradas que trazia para alegrar e distrair o padrinho.

      Ele estava como pensionista; mas, embora assim, no começo, ela teve um certo pudor em se misturar com os visitantes.

      Parecia-lhe que a sua fortuna a punha acima de presenciar misérias; recalcou porém, dentro de si esse pensamento egoísta, o seu orgulho de classe, e agora entrava naturalmente, pondo em mais destaque a sua elegância natural. Amava esses sacrifícios, essas abnegações, tinha o sentimento da grandeza deles, e ficou contente consigo mesma.

      No bonde vinham outros visitantes e todos não tardaram em saltar no portão do manicômio. Como em todas as portas dos nossos infernos sociais, havia de toda gente, de várias condições, nascimentos e fortunas. Não é só a morte que nivela; a loucura, o crime e a moléstia passam também a sua rasoura pelas distinções que inventamos.

      Os bem vestidos e os mal vestidos, os elegantes e os pobres, os feios e os bonitos, os inteligentes e os néscios, entravam com respeito, com concentração, com uma ponta de pavor nos olhos como se penetrassem noutro mundo.

      Chegavam aos parentes e os embrulhos se desfaziam: eram guloseimas, fumo, meias, chinelas, às vezes livros e jornais, Dos doentes uns conversavam com os parentes; outros mantinham-se calados, num mutismo feroz e inexplicável; outros indiferentes; e era tal a variedade de aspectos dessas recepções que se chegava a esquecer o império da doença sobre todos aqueles infelizes, tanto ela variava neste ou naquele, para se pensar em caprichos pessoais, em ditames das vontades livres de cada um.

      E ela pensava como esta nossa vida é variada e diversa, como ela é mais rica de aspectos tristes que de alegres, e como na variedade da vida a tristeza pode mais variar que a alegria e como que dá o próprio movimento da vida.

      Verificando isso, quase teve satisfação, pois a sua natureza inteligente e curiosa se comprazia nas mais simples descobertas que seu espírito fazia.

      Quaresma estava melhor. A exaltação passara e o delírio parecia querer desaparecer completamente. Chocando-se com aquele meio, houve logo nele uma reação salutar e necessária. Estava doido, pois se o punham ali...

      Quando veio a ter com o compadre e a afilhada até trazia um sorriso de satisfação por baixo do bigode já grisalho. Tinha emagrecido um pouco, os cabelos pretos estavam um pouco brancos, mas o aspecto geral era o mesmo. Não perdera totalmente a mansuetude e a ternura no falar, mas quando a mania lhe tomava ficava um tanto seco e desconfiado. Ao vê-los disse amavelmente:

      — Então vieram sempre... Estava à espera...

      Cumprimentaram-se e ele deu mesmo um largo abraço na afilhada.

      — Como está Adelaide?

      — Bem. Mandou lembranças e não veio porque... adiantou Coleoni.

      — Coitada! disse ele, e pendeu a cabeça como se quisesse afastar uma recordação triste; em seguida, perguntou:

      — E o Ricardo?

      A afilhada apressou-se em responder ao padrinho, com alvoroço e alegria. Via-o já escapo à semi-sepultura de insânia.

      — Está bom, padrinho. Procurou papai há dias e disse que a sua aposentadoria já está quase acabada.

      Coleoni tinha-se sentado. Quaresma também e a moça estava de pé, para melhor olhar o padrinho com os seus olhos muito luminosos e firmes no encarar. Guardas, internos e médicos passavam pelas portas com a indiferença profissional. Os visitantes não se olhavam, pareciam que não queriam conhecer-se na rua. Lá fora, era o dia lindo, os ares macios, o mar infinito e melancólico, as montanhas a se recortar num céu de seda - a beleza da natureza imponente e indecifrável, Coleoni, embora mais assíduo nas visitas, notava as melhoras do compadre com satisfação que errava na sua fisionomia, num ligeiro sorriso. Num dado momento aventurou:

      — O major já está muito melhor; quer sair?

      Quaresma não respondeu logo; pensou um pouco e respondeu firme e vagarosamente:

      — É melhor esperar um pouco. Vou melhor... Sinto incomodar-te tanto mas vocês que têm sido tão bons, hão de levar tudo isso para conta da própria bondade. Quem tem inimigos deve ter também bons amigos...

      O pai e a filha entreolharam-se; o major levantou a cabeça e parecia que as lágrimas queriam rebentar. A moça interveio de pronto:

      — Sabe, padrinho, vou casar-me.

      — É verdade, confirmou o pai. A Olga vai casar-se e nós vínhamos preveni-lo.

      — Quem é teu noivo? perguntou Quaresma.

      — É um rapaz...

      — Decerto, interrompeu o padrinho sorrindo.

      E os dois acompanharam-no com familiaridade e contentamento. Era um bom sinal.

      — É o Senhor Armando Borges, doutorando. Está satisfeito, padrinho? fez Olga gentilmente.

      — Então é para depois do fim do ano.

      — Esperamos que seja por aí, disse o italiano.

      — Gostas muito dele? indagou o padrinho.

      Ela não sabia responder aquela pergunta. Queria sentir que gostava, mas estava que não. E por que casava? Não sabia... Um impulso do seu meio, uma coisa que não vinha dela - não sabia... Gostava de outro? Também não. Todos os rapazes que ela conhecia não possuíam relevo que a ferisse, não tinham o "quê", ainda indeterminado na sua emoção e na sua inteligência, que a fascinasse ou subjugasse. Ela não sabia bem o que era, não chegava a extremar na percepção das suas inclinações a qualidade que ela queria ver dominante no homem. Era o heróico, era o fora do comum, era a força de projeção para as grandes coisas; mas nessa confusão mental dos nossos primeiros anos, quando as idéias e os desejos se entrelaçam e se embaralham, Olga não podia colher e registrar esse anelo, esse modo de se lhe representar e de amar o indivíduo masculino.

      E tinha razão em se casar sem obedecer à sua concepção. É tão difícil ver nitidamente num homem, de vinte a trinta anos, o que ela sonhara

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