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tinha dito: «rapazes, se tirarmos proveito daqueles que tem no palerma do advogado Paceno, às administrativas sai certamente um conselheiro comunal».

      Mas era uma coisa de algum tempo antes. Hoje diz-se conselheiro regional.

      Portanto sucumbir, mesmo que fosse apenas em primeiro grau, nós todos do escritório intuíamos que para Spanna constituía mais ou menos uma infâmia para lavar com o sangue. E só Deus sabe como Paceno tivesse conseguido, para vencer, e como se teria feito gabarolice, vaidoso como era.

      Em suma, um mau dia. Mau dia para todos.

      Mutolo pareceu tê-lo percebido. Era mais silencioso do normal e, se possível, tornou-se ainda mais invisível. Como o cão de casa, que quando há um nervosismo no ar move-se pouco e com a cabeça baixa, tendo predilecção pelos percursos apoiado nas paredes para não fazer-se notar. O cão de casa é a ultima roda da carroça e, no percurso social do vaso de barro entre aqueles de ferro, sabe que no fim alguém vai ralar-se com ele.

      Intuía a sua concentração máxima. Creio que falava consigo mesmo, como uma oração védica, «eu não existo, eu não existo…»

      Reparei-o. Temia que se desmaterializasse diante dos meus olhos a fúria de experimentar. Porque para poder ser mais invisível de como era, o desaparecimento material era a única possibilidade.

      «Então, Mutolo», mostrou-me sereno, «tive uma relação para o recibo de gás contestada: está tudo resolvido.»

      Sorrisos.

      Mutolo levantou ligeiramente as pálpebras, e relaxou os músculos da coluna. Para um como ele, tal manifestação exterior era o equivalente do grito de um adepto quando a sua equipa marca.

      «Obrigado, advogado», disse. Estava satisfeito, e me estimava.

      Estava em condições de percebê-lo.

      «Ehm… quanto lhe… quanto devo…» perguntou-me.

      Tinha visto abastados empresários a sair do gabinete de Spanna sem por acaso proferida, aquele pedido: se Spanna – dada a espera vã – diziam eles algo movendo a iniciativa a propósito do honorário, mostravam-se confusos, fazendo às vezes mesmo a doce parte de desculpar-se por não tê-lo pedido. O esquecimento. Depois, talvez, pediam desculpa por não ter trazido o livro de cheques, mas de facto pagavam depois de meses.

      Não era tão-pouco uma questão de esperteza, mas da falta daquela patologia rara e dramaticamente irremediável da qual Mutolo pelo contrário estava sujeito, denominada cientificamente «dignidade». Aliás agravada do respeito pelo trabalho alheio. Nos casos fulminantes, deixam poucos meses de vida diferenciados por atrozes sofrimentos.

      «Nada, Mutolo, está bem assim, fiz apenas um fax, no fundo.»

      Ao pronunciar estas palavras, levantei-me e lhe dei uma correspondência, embrulhada numa folha branca grande dobrada ao meio em forma de fascículo.

      «Agora tens que me desculpar, mas tenho muito que fazer. Conservar com cuidado estes papéis. No caso de qualquer contestação, um amanhã, poderá exibi-los. Confirmaram o desagravo das somas a meio recomendadas. Quando chegar a chamo, assim vem buscar também aquela.»

      Mutolo pegou o pequeno maço de papéis, enfiou com cuidado num bolso interno do casaco enorme, um bolso em forma de bolsa, e desapareceu. Creio que a porta tenha permanecido fechada à sua passagem.

      Ele as atravessava sem abri-las, as portas: enfim estava certo.

      Voltei aos meus pensamentos.

      O dia tinha sido longo, e começava a sentir a fadiga. Devia ainda terminar a examinação dum fascículo. Uma questão do condomínio. Um assunto firmemente pouco cativante.

      Mas Spanna tinha dito que devia relacionar eu sobre este novo contencioso recebido pelo escritório há pouco tempo. O cliente tinha brigado com o advogado que o assistia anteriormente e o tinha confiado a ele. Cabia a mim. Era experiencia e devia fazê-lo, e mesmo bem.

      Com o mesmo entusiasmo dum condenado que se encaminha ao patíbulo, comecei a ler a ler volumosa documentação duma causa que se arrastava há anos. Quase depois de três horas, sabia (quase) tudo sobre a competência das despesas d o condomínio aferentes as projecções verticais das varandas e as goteiras.

      Estava suficientemente, decidido.

      ***

      Tinha fome, estava cansado, e Fanny estava desligando o computador. Sinais claros que para aquela noite era suficiente. Aguardava-me o meu jantar preferido.

      Fanny, no entanto, estava quase na porta, e dirigiu um olhar interrogativo para mim, enquanto enfiava o tiracolo da carteira no ombro.

      «Sim», disse respondendo à sua pergunta silenciosa, «saio eu também. Para hoje está bem assim.»

      Ela extraiu as chaves e, trancada a porta, atrelou-se ao celular. Despedindo-se com um sinal, logo que esteve fora do protão, enquanto ainda estava o interlocutor do outro lado do telefone, desapareceu rapidamente na penumbra das ruas do centro da cidade.

      Eu pensei nas enchovas e na cerveja, e pus-me a andar por minha vez.

      Vivia com o meu pai. Um tipo tranquilo, tendo obtido a reforma há pouco tempo.

      O meu jantar preferido, aquele que me aguardava, era composta por anacárdios, anchovas em azeite, damascos secos e cerveja gelada. Teria consumido lentamente diante da TV, tornado curioso pelo espectáculo da gente que, além do ecrã, agarravam-se pelos cabelos na tentativa de persuadir quem estava «do lado de cá». Uma vez chamava-se wrestling. Agora diz-se «debate»: desafios entre campeões da nova luta do século. O árbitro anuncia com orgulho o primeiro match, e os grupos rivais. «Esta noite temos no ringue o homem merda, da equipa dos patifes, que inicia o combate contra a mulher do mistério, da equipa dos falsos bons». Surpreendentemente ágil e endiabrado não obstante a figura atarracada, com laço e as mangas da camisa arregaçadas até ao cotovelo, o árbitro dava o sinal de inicio.

      Deixavam-me mais curiosos, aqueles duelos.

      Entre um anacárdio e uma enchova, observava as técnicas: golpes sobre a cintura moral, pegadas às rodas ao raciocínio, socos verbais às lufadas. Todas as coisas que, de facto, ao adversário não provocavam algum prejuízo real.

      Reparava-os combater-se simulando golpes mortais, retomando o arranque sobre as cordas elásticas do ringue para depois lançar-se sobre o antagonista. De vez em quando os protagonistas do duelo, exaustos, alternavam-se com outros colegas da equipa, e em todo este caos não se percebia uma ova.

      O encontro, por hábito, terminava desta forma, entre vestuários rasgados e madeixas de cabelos esvoaçantes: o grupo vencedor vinha decidido na mesinha, quanto a mim, e o match tinha o sabor duma finta colossal. Todavia, o dia seguinte, no bar se poderia comentar a feroz disputa: «viste quando o homem cobarde agarrou pelos conceitos o homem grissino?» dizia um tipo gorducho ao seu amigo.

      «Sim!» respondia excitado o outro. «Agarrou-o lançou-o muitas vezes de cara contra as suas afirmações incontestáveis. Que pancadas, rapazes!»

      Até aquele ponto, quase sempre chegava o terceiro amigo do café, e entrava de perna esticada: «mas deixem para lá… a mulher cobiçosa foi grande quando fez o movimento do raciocínio em dupla espiral envolvente contra todas as duas luvas gémeas junto… e aquele movimento vale o encontro!» caíram o Carmo e a Trindade! Poucos minutos depois, no bar não se percebia mais nada. Injurias, encolhimento de ombros para mostrar suficiência, frases feitas e repetições em lengalenga de ideias possuídas por empréstimo, clientes que se desfilam prudentes, mas que acabavam por formar grupos um pouco mais adiante, depois de ter dito: «eu não quis intervir, com aqueles vaqueiros, mas a ti o digo: a mulher – escort tinha razão!» por vezes, contudo, falhavam a avaliação sobre o alinhamento do interlocutor, e a briga recomeçava num outro ponto da cidade.

      A REDE

      A manhã era tediosa, e também fresquinho.

      Uma serie de desempenho me aguardava. Toda

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